Zélia Salgado | 100 anos de lucidez e ação |
"Para uma Salgado você é um docinho"

©Alexandros Papadopoulos Evremidis*

Sim, foi isso que eu, acariciando suavemente a mão de Zélia, sussurrei no ouvido dela, quando chegou ao Belas Artes, aclamada, porém, distante, anuviada e aérea e bela como só uma sábia que sabia ser tudo aquilo "vanitas" - dos outros. Ela veio trazida de carrinho.

Pega de surpresa pelo inusitado do meu gesto e pela inequívoca significação da minha frase, Zélia piscou, um beija-flor que asas batesse, fixamente me fixou, do fundo da memória afetiva aqueles sons resgatasse, como se o instante de encanto fixar desejasse. Uma nuance de delicado rosa, intensamente irradiante, banhou seu semblante. Não chegou a sorrir com todas as letras, apenas um esboço, tão misterioso quanto o da Giocondo (esse, o verdadeiro sobrenome da dita cuja), prenhe de cúmplice entendimento, agora selado. Ela sempre soube que as palavras amorosas feridas são - abertas na matéria plástica, repito, anima e inanimada, se é que esta última merece e convém ser tão categórica.

Artista consumada e daí conhecedora da transparência das humanas almas, em toda a sua espantosa infantilidade e inocência e ingenuidade, ela certamente havia lido nos crônicos diplomas do meu rosto que aquilo era o modo de dizer que eu já tinha peregrinado pelos belos e generosos (e mofados salões - inclua isso na reforma, Herke) espaços do Belas Artes e tinha me rendido, admirado e, mais, literalmente de quatro, adorado as suas pinturas e as suas esculturas, as suas mais nuas e perturbadoras gravuras.

Lembro vividamente ter me demorado diante dos seus portraits muito calientes, expressivos, envolventes, luminosos, insinuantes, proprietários de ímpar frescor e de perene juventude - não posso evitar, também de cândida e apócrifa sensualidade, uma raridade essa cabeça de viés descendente, sob o peso e a leveza da trêmula expectativa e do subjacente desejo.

Vi também e fui todo exclamação diante de seus fragmentos de pedras brutas, arrancadas ao Caos, agora esculturas inacabadas e no entanto perfeitamente conclusas, já que denunciando os primeiros instantes do surgimento e da formação e da candente e silenciosa manifestação das primeiras faces humanas, em toda a sua etérea e atemporal beleza. Momentos de intensa comoção reinaram.

E então, na outra ponta desse dramático ponto, desse nuclear processo e procedimento, exultante e com a respiração suspensa, testemunhei o exato e sublime instante da Criação. Vi a Zélia na presença de deus, e com muito maior propriedade e oportunidade na ausência dele, liberta da híbris, agir como deus e com sua ferramenta, não o sopro, operar a "glípsis" (lambida), ferindo a face vazia do barro oval com apenas um singelo L (Brancusi não fez o mesmo com Y?), dotando-o assim de face humana, com identidade, pneuma, noé, instinto, emoção, sentimento - despertando-o para a vida. Foi um gesto rápido e certeiro, plenamente consciente de que erro não poderia haver, sob pena de vida não haver, e se configurou no primeiríssimo movimento escultórico dos tempos - contraponto afirmativo do golpe da espada do samurai, que, desferido com igual destreza, desconstrói e destrói. Foi um momento de extrema sacralidade - a gênese do Gênesis. Entendi que vida e arte principiavam ali.

Transtornado e subjugado por aquele olímpico teama, qual sonâmbulo fui ver aqueles seus outros bronzes - construções arquitetônicas binárias que, vazadas e permeáveis, alternam o sim e o não, como se a artista nos quisesse dizer das imensidões intersticiais das partículas elementares, nossas fundações, e das forças eletromagnéticas ali instaladas em mútuas atrações e repulsas. Vasto é o universo, vitais e vivificantes são o ar e luz e frágeis são os humanos e os demais viventes. Todos, entretanto, têm a licença e podem e devem atravessar e percorrer esses estratégicos espaços da matéria contagiante e contagiosa, acompanhados de generosas porções de liberdade, essa mesma liberdade de que a artista, pioneira, uso fez. A visão passa e fica. E fica presa ali, naquela impressionante figura humana que, sentada, braços apoiados atrás, constituição esquelética, apenas linhas essenciais e nada mais, reduz e traduz o mundo.

Vi mais isto e vi ainda aquilo e vi as recentes criações de Zélia que, virtualmente dispensando a tela ou outro suporte qualquer, pareciam ter sido pintadas diretamente no espaço sideral, organizado em generosos e luminosos planos cromáticos, desses que nos fazem ansiar para irmos ao encontro do criador, seja ele quem for - Zélia, por exemplo. Zélia que vi apaixonar-se perdidamente pela arte de Rodin, de "Giaco", de Brancusi, de Amedeo, de Di, de ... estava claro o complot que ela com eles havia tramado para nos sacudir, esvaziar e depois encher, inundar de substantiva substância, abrir-nos os olhos para enxergarmos a beleza daquilo que chamamos de arte - arte cuja história dos últimos cem anos Zélia, que completava 100 anos naquele dia, havia escriturado por meio de suas obras. Pensei em sugerir a Herke, e sugiro, que mandasse um dossiê para o Apolo para glorificar e conferir a coroa de louros à artista, artisticamente já canonizada.

Vi, finalmente, Portinari retratá-la com toda a panoplia - olhar penetrante, lábios decididos, expressão de uma promessa que agora está provada e comprovada - deixar as suas pegadas no tempo e no espaço para podermos, por elas guiadas, ir sem nos preocupar para onde.

Torne a olhar para a escultura da foto ao alto. Chama-se "Serenidade" e é, certamente, a própria Zélia, uma hierática hiéria - toda devoção e toda estética. Foi por causa dela que, abrindo mão de urgentes cuidados com a saúde, agendados para o mesmo horário, fui ao Belas Artes. Pensei: uma artista que é capaz disso é capaz de tudo, inclusive de nos curar - não é este o lema deste jornal?

Zélia zelosa que é zelará por nós. Agora paro por aqui porque Brecheret vem aí para nos saciar a fome de volumes e de grandezas.

Rio de Janeiro 2004

©Alexandros Papadopoulos Evremidis > escritor crítico > Email


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