| Coletiva "Caderno de anotações" - Vlado, 30 anos
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É de arrepiar, +, entrar em compulsiva convusão!

©Alexandros Papadpoulos Evremidis*

Tanto assim que, depois da visitação e da homenagem rendida ao torturado Vlado, ao voltar para o cortiço, torturado também eu me senti e, não conseguindo pregar olho, fiquei suspirando fundo, gemendo baixinho e rolando pela cama em busca do entendimento dos humanos dramas e paixões - que é em que se consubstancia a fértil vida e a prematura morte do Vlado, o seu brutal assassinato pelos raivosos cães e ensandecidos gorilas que, dizendo-se amantes e guardiões da Liberdade, então dela se assenhorearam e com intolerável selvageria a estupraram e esquartejaram, negando assim ou subtraindo a todos quantos o direito ao corpo (habeas corpus) e à palavra - ambos fundamentais do nosso ser. Na outra margem, o Nada.

Ao chegar à inauguração, na ABI, casa que nos idos mais críticos de minha existência, me acolheu, nutriu, curou e edificou, por instantes estranhei a ausência da juvenil e descomprometida e reconfortadora algazarra que habitualmente por lá reina, do burburinho e do enxamear das alegres inteligências dos que, com exceção desses raros momentos de lazer, se devotam a essa profissão missão (olímpica) da diuturna vigilância, do doloroso resgate da verdade (por mais relativa, já que humanum est) e de sua revelação aos homens.

Mas, ao ver as duas fileiras dos frágeis caderninhos, instalados em instável suspensão e anatômica altura, em forma de corredor (polonês?), como a contrastar com a estabilidade e a solidez das colunas entremeadas (tudo absolutamente sintomático!), a eles me dirigir, observar, sensualmente manusear sua tactilidade e por inteiro me entregar a seu entendimento, tudo subitamente ficou claro como a clara luz desse dia que lá fora agora brilha e que a Vlado, estupidamente confinado por seus algozes à mais negra obscuridão, tão cedo em sua vida, inapelavel e cruelmente interdita foi. Me dei conta então de que ali nos encontrávamos, não para festejar e celebrar, mas para, mobilizados pela arte e pelo sofrimento do Vlado, nos dedicar o exercício do silêncio, da reflexão, da meditação. Para compreendermos por que havíamos chegado a tal ponto de degradação e como proceder para construirmos uma cultura sem tortura, nunca mais.

Sim, foi aí e foi então que os nós em mim se robusteceram e me senti percorrido por violentos arrepios. Gritos e sussurros, vozes de comando, pancadas surdas e gemidos abafados, lancinantes dores, ainda que contidas, me assaltaram, subjugaram e povoaram. E só não sucumbi a eles porque, repentinamente e por força do feliz acaso, meu olhar e minha atenção foram atraídos por algo sublime e por oportuna graça fui confrontado com a Beleza personificada numa mulher cuja expressão facial, movimentação e seu approach em geral reuniam a desejada e necessária estética, a aguda percepção, a refinada inteligência, a madura sabedoria, a serena serenidade. Era uma das artistas.

Era, foi, como se uma deusa ex-maquina me arrancasse dos tenebrosos abismos subterrâneos do martírio do Vlado e me alçasse para etéreas nonas esferas e me conciliasse e apaziguasse. Com sua aveludada voz de límpida água em pacificado riacho, dizia a mulher, visivelmente movida e comovida, mas em absoluto ressentida, das reuniões clandestinas da época do Grande Terror, nos teatros, nos escassos espaços culturais, "aqui mesmo na ABI", e do porquê havia pintado aquele quadro ali, o do general - para nele para sempre fixar a cínica e gélida expressão dos que se sentiam superiores e onipotentes e delirantes e arrogantes olhavam do alto dos palanques para nós como se abortos da natureza. A insolência da autoridade e sua impotente prepotência. Entendi então para que serviriam o sacrifício do Vlado, seu corpo aviltado, seu sangue derramado - para deles nos nutrirmos e fortalecermos e seguirmos adiante, para a luz, proprietária da liberdade.

No mínimo, o máximo; e não estou falando do minimalismo na criação, mas do material. Os cadernos, os caderninhos. Afinal, que poder tão explosivo e corrosivo podiam eles ter e conter?! Bem, para o jornalista, o bloquinho e a caneta, sua aliada, representam tudo - são suas armas indispensáveis ferramentas para registrar essa suprema conquista que é a palavra, que, enquanto verba volant, evanece; já quando escrita (desenhada) (scripta manent), se configura depositária fiel dos conteúdos da civilização, os transmite e comunica, revelando assim os homens aos homens e mantendo aceso o fogo da estia e evitando a destruição e o esquecimento. Ninguém desconhece a dramática função decisória de um simples Sim ou Não, Amor ou Ódio, ditos ou mostrados pelo polegar dos truculentos imperadores (da época) para cima ou para baixo.

Sim, mas o que um sensível e laborioso artista poderia empreender com um suporte reles como aquele? É onde entra a natureza do artista, capaz de, contrariando a filosofia e a física, do nada fazer algo; do grão de areia, a terra; da gota de água, o oceano; do pensamento, o universo. Os setenta e tantos artistas que atenderam ao chamado do caderninho, dele fizeram... misérias! Se aquilo fosse um concurso, os membros da comissão julgadora teriam que conferir o primeiro prêmio a todos e a cada um individualmente, já que, indistintamente, todos, não apelando para gags and gadgets, criaram obras perfeitas e acabadas, de profunda e perene significação. Correspondendo à movente motivação, a arte contemporânea operou por meio deles de pleno e com inteligência, espontaneidade, criatividade, encanto, inventividade, surpresa, estranhamento, complexidade do óbvio, seminal vazamento e irrigação.

Só para ilustrar: Artista há que deixou o bloquinho in virgine, intacto, como se à espera de Vlado que, tendo arquivado o anterior, preenchido com a humana história, fosse chegar, pegar, pôr no bolso e sair em campo. Outros o perfuraram com mortíferas balas, o pregaram com afiados pregos, o amarraram, o empacotaram, o crucificaram, o sepultaram, o cimentaram, o mancharam com sangue, o enfeitaram com rendas, nele fizeram curativo, desenharam, escreveram n poéticas, aforismos, palavras de ordem, inseriram Vlado como chip no circuito da placa-mãe, etc. e mais. Resumindo: são todos eles pequenos túmulos contendo vida e preservando viva a viva memória do Vlado. (É preciso lá retornar para tudo rever, de novo e de novo, até assimilar o infinito poder da arte e o porquê ela não tem limites na extensão e na sucessão, nem a elas pertence).

A exposição não se esgota nos caderninhos. Como contraponto a eles, há também um objeto motorizado, composto por uma hélice que faz Vlado girar lenta e ininterruptamente e algumas pinturas de variados tamanhos e de imenso impacto emocional e estético, trágico mesmo. Tudo pesado e medido, posso dizer que, transcendendo a intransponível homenagem a Vlado, a exposição extrapola o subjetivo e o regional e assume o caráter de mensagem de insuspeitada dimensão universal. Será testemunha dos homens e do seu tempo. Para o bem e para mal.

Uma coisa é certa - resgatado à morte por esses sensíveis artistas, Vladimir Herzog vive em cada caderninho daqueles e em cada um de nós. Para sempre!

Rio de Janeiro - 2005

©Alexandros Papadopoulos Evremidis > escritor crítico > Email


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