"Pinturas", de Umberto França.
Homem-bomba!

©Alexandros Papadopoulos Evremidis*

Calma, não se assuste à toa, "seu" F. Pessoa, (cantava aquelazinha), que a vida é e, ainda e sempre, apesar de toda fama, suja de lama, será boa! França não é um desses anônimos, infelizes e trágicos heróis que se explodem e, qual Sansão, morrem junto com os inimigos, na vã esperança de um dia poder libertar a parte que lhes cabe naquele arenoso latifúndio, ainda que seja do tamanho de sua cova (rasa!), das garras da usurpadora ave rapina. Umberto França é epígono de uma construção de requintado estofo e de refinada ideologia, é todo ele artista de tempo integral e, como tal, outras também são suas inquietações, outros seus meios e distintos seus escopos, embora nada do que diz respeito às aspirações e às tragédias humanas lhe seja indiferente.

Certo está que França também explodiu, sim, mas foi "numa nice", numa de maluco beleza, como era chamado o outro. Ao invés de dinamite e/ou bombas, adivinha o que tinha amarrado ao corpo? - tintas, cores, alegria, humor e cáustica ironia; tudo indo pelos ares, quero dizer, pelas telas, necessaria e sintomaticamente monumentais, em dionisíaca e pandemoníaca concelebração! Ao longo dos milênios, os filósofos explicaram o mundo, sem que houvesse quem lhes desse ouvidos; houve até quem (um mal-compreendido gênio), romanticamente, propusesse a substituição do verbo "explicar" por "mudar" o mundo, mas tudo em vão. Uns e o outro esbarraram na voracidade e no egoismo imperantes. Fala-se em civilização, mas pratica-se e vive-se a cruel lei da selva, a do mais forte e do mais afeito a maquiavélicas maquinações, impiedosa e predatoriamente, subjugando e escravizando os mais desassistidos por uma natureza que, ironicamente, sendo madrasta, chamam de mãe. Só falta cantarem que é gentil.

E aí, fazendo coro com tantos outros, antes, durante e certamente depois, vem Umberto França, esse sensível humanista e arte-pedagogo de egressos dos contemporâneos campos de concentração, sul-americanos e asiáticos, e, armado até os dentes com os elementos do supracitado polinômio - cor, alegria, humor, carnavalização, rir nem que seja da própria desgraça -, quer, não explicar ou mudar o mundo e os humanos, mas contagiar e contaminá-los, colorir e alegrar essa balbúrdia minimalista, dominada pela mínima inteligência, pela quase nenhuma sensibilidade e pela máxima futilidade, a ignóbil vaidade das vaidades, que Salô, o bon-vivant, também cantava. Longa é a história, ínfimo o aprendizado.

Diz o visionário e epifânico Ferreira Gullar, no catálogo do artista, que a pintura de Umberto França poderia ser sintetizada em duas palavras: ação e cor. Mais realista que o poeta real serei, ainda mais sintetizarei e uma só palavra, que já disse, tornarei a dizer e outra vez a repetirei: explosão! Bummm!!! Bum bum bum! foi exatamente isso que aconteceu com e a esse artista singular de aspecto e índole absoluta e sedutoramente jovial. França explodiu, sim, mas não sendo ele bala dum-dum, também não foi em mil segmentos de fogoso chumbo que ele se fragmentou e com eles o habitat da humana alma incendiou e destruiu, mas com seus pincéis, mil vezes mil cores e formas, de todas as tonalidades e de todos os matizes, sobre seu terreno familiar e íntimo - a acolhedora, cálida, úmida e sensual tela, aspergiu. E de tal forma equânime e justa, que nenhuma delas terá razões para se queixar; todas foram proporcionalmente contempladas - umas, mais em extensão territorial e propósito estratégico, as dominatrizes e puras - vermelho, amarelo, azul -, outras, as resultantes - laranja, verde, violeta -, em particularizações e significativos destaques. Sem esquecer do preto e do branco que, pontuando aqui e ali, dançam a contradança e o pas-de-deux com suas vizinhas, ora encorpando e avolumando, ora avançando ou recuando, aumentando ou diminuindo o brilho ou a opacidade de quem disso se fizer merecedor; tudo ao sabor das avassaladoras emoções e do sutil feeling pictórico do artista, que não descuida do acidente feliz, que também reclama seus direitos.

Afinal, por alguma indefectível lei de probabilidades, se tudo for aleatório, tudo, dia mais dia menos, também terá suas chances de ver sua ocorrência confirmada; e se tudo for predeterminado, melhor ainda, eximidos que estaremos dos pecados e dos crimes, dos deslizes e dos desvios, das pinceladas sem volta ou correção; já, se tudo for causa e conseqüência, cabe ao artista nos revelar, ou não, seu propósito, se e quando o houver, ainda que elíptico ou oculto.

Sabe Dante, o vate, que movido por fortes paixões atirou os inimigos aos círculos infernais e instalou os amigos no paraíso? França parece ter feito algo similar, só que em escala maior, incluindo ali, além dos chegados e dos desafetos, os super-heróis e os anti-heróis dos gibis e dos cartoons de sua infanto-adolescência. Digo isso porque, em meio ao mar de cores e formas, com elas se fundindo e confundindo, há um sem-número de figuras humanas, animais e híbridas. Algumas são aparentes; outras, apenas insinuadas; há aquelas que ele realmente pintou e aquelas que, estando camufladas, acabaram por surgir com alguns toques à guisa de contorno ou delineamento, que nem nesses jogos de passatempo, em que você deve ir juntando os pontinhos até a figura aparecer; e ainda aquelas que de fato são donas de uma forma definida e as de natureza amebiana, ocupando o espaço segundo critérios não muito rígidos. Todas, porém, de uma forma ou de outra, são figuras, ora caricatas, ora personalisticamente estilizadas, mais para comics do que para "modelos" disto e/ou daquilo; informes, disformes, deformadas e amorfas mesmo.

Há, entretanto um outro e visceral aspecto a considerar nessa orgiástica policromia figurativa de França: imagine um artista que atravessou a lira dos cinquent'anos comportado, observando as leis da moral e dos bons costumes e obedecendo aos preceitos morais e éticos, religiosos e estéticos, sociais e políticos, cânones artísticos e de toda sorte e azar. Mas a vida é cruel e vingativa. Não perdoa. É sempre bom lembrar, como canta o outro, que um copo vazio está cheio de ar e basta uma gota para um copo cheio transbordar. A sensação que nos fica é a de que, de fato, certo dia, o copo transbordou, França chutou o balde e tudo o mais pro ar, pra terra e pro mar e num delírio, resolveu fazer tudo que ele ao longo da vida havia deixado de fazer - se divertir pra valer, pintando o que lhe desse vontade e como lhe apetecesse! Numa espécie de retrospectiva interior, e em delírio, retratou, então, os elementos de sua memória afetiva, as rebeldias que não cometeu, os motins, as revoltas, as traquinagens todas, as peraltices, as transgressões, as insubordinações, ... O resultado não poderia ser melhor - ele se divertiu à vera e à beça, realizando assim sua catarse. Quanto a nós, é só mirarmo-nos no exemplo de França e tentar fazer o mesmo ritual da libertação. Precisando de uma carona ou de um empurrão, França está aí para isso!

Foto: Jorge Vasconcelos

Rio de Janeiro 2003.

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