| Tunga - Laminadas almas | & | Lia Rodrigues - Performance |
"Der Drang zum Leben" ou Palmas para as almas

©Alexandros Papadopoulos Evremidis*

Onde começa a arte?
Não começa, é totum continuum.
Vamos supreendê-la no exato instante da chegada do convite. Uh lá lá! Um envelope em hierático negro. Presságios. Retângulo privilegiando a largura. Antes mesmo de abri-lo, mostrei-o ao filius Danis: O que acha? Arte pura! Sem titubear.
Lado destinatário: nada, tudo, negro retinto. Denso, compacto de imenso impacto. Morte. Luto.
Lado remetente: etiqueta destinatária fazendo vez de fecho. Fundo branco, uma janela, uma luz, um sinal (de vida). Canto superior direito: dois selos coloridos - um, trompete, sopro celestial; outro, berimbau, vibração primordial - percutir, repercutir. Um arame, uma cabaça (cabeça, cabaço) para ressonância e só (e não é pouco!) - também aqui começa a arte sem começos.
Venha, vamos penetrar o invólucro: Novo Uhh lá lá!! agora mais sonoro de tão enfeitiçado. Que luminosidade mais fosforescente essa da cartolina verde-limão-amarelada que nos envolve e banha e conduz para terreiros apócrifos, interditos!?
E essa sombra do transgênico homem-mosca de capa e espada, espetado entomologicamente (qual borboleta) com alfinete na cartolina do nada?! E que com tetradáctilas mãos/garras ameaça agarrar e ferrar o "TUNGA" des/confortavelmente assentado sobre LAMINADAS ALMAS?! Lâminas afiadas?! Tomografadas?! Fatiadas?! Industrializadas? Serão iluminadas almas?!
Sei eu lá! Sei que brincando com aliteração, assonância e paronomásia, transcriam a poética das almas calmas, das almas cheias de lamas e das almas penadas a vagar e atormentar.
Palmas para as almas sem lamas, paralamas contra as paralâminas!
Tunga = MC heteróclito, anarquizante e ofidiosáurico oficiante de ritos de desreconstrução.
Mas afinal do que estou falando?! Do que está por ir e vir, do ser e do estar, do "ontos on".
É preciso viver para sobreviver. Para só então ver. Não sendo absolutamente necessário crer.


Dias depois, a caminho do vernissage:

Grande a incógnita, maior a expectativa. Em tempos idos, já tínhamos visto Tunga construir, por mãos de desnudas e enlameadas ninfas, vasos de barro; continentes, portanto, metáforas do útero menor e do útero maior - do cosmo, da criação. E, aterrados, também já o víramos oficiar o ritual da orfi-orgiástica desconstrução - do alto do mezanino de um espaço cultural atirava ele para o chão, de vidro, e também para o térreo lá embaixo, vasos de vidro (muranos cristais?) que se despedaçavam bela e cristalinamente. Ao final, tirava o martelo escondido no bolso do manto e solenemente aplicava violentos golpes contra o vidro do próprio piso, estilhaçando e arruinando-o, ferindo-o de morte. Tendo eu crescido em ambiente, onde se quebra pratos e se dança em cima dos cacos, a comoção da memória afetiva foi avassaladora. Uma tremenda de uma catharsis! Apolo voa, Dióniso dança, pensei na ocasião e me vi dramaticamente pisando o chão, como se ensaiando/ansiando por impulso, e a um tempo suspenso.

Chegamos ao lugar da exposição, que sintomaticamente se chama Arquivo Geral do Jardim Botânico (este, viveiro e cemitério de plantas e de seus amantes, toda sorte de viventes). E, de fato, logo na primeira sala, "arquivados" encontravam-se, sob baixos abajures acesos, remanescentes "arqueológicos" - mega-armações descarnadas de asas de mega-éntomos na companhia de seus algozes - a bengala do Herr Doctor (No ou Caligari?) e os mega-alfinetes com que ele, no mais crítico instante da breve existência das suas adoradas vítimas, as capturava e cruel e amorosamente as espetava (eventualmente submetia à vivisecção) e ainda vivas as pregava e para sempre imobilizava (crucificava, não mais apropriado?), mumificava, em todo caso, usando como interface tumular a face de uma cartolina - o animal no vegetal. Agora, ali, atores imóveis e silenciosos, representavam sua própria tragédia, fornecendo assim testemunho de sua macabra destinação histórica. Isso, ao som de monocórdios mantras/hinos de intensa dramaticidade, que pareciam celebrar os ritos de passagem da breve vida para a irreversível morte (mesmo consolando/condenando-nos com o mito da metempsicótica transmigração).

Na sala seguinte, o surpreendente cerne da questão: Uma mega-instalação laboratorial/biológica, composta por viveiros/jaulas: numa ponta, um sem-número de moscas pousadas nas telas de sua armadilha perscrutam o mundo exterior com seus olhos compostos e indagam a razão de ser; na outra, confinadas e trepadas umas sobre as outras estão as rãs, complementares das moscas na cadeia (sim, tal qual as cores, também as formas e as matérias, os seres, têm seus complementares e seus contrastantes); no meio, uma escultura construída como edifício de contemporânea arquitetura e constituída por espessas lâminas de imperioso impacto estético; logo abaixo, tanque repleto de peixes exala odores repugnantes (a natureza desconhece o adjetivo) de putrefatos nutrientes e fezes (estas, ainda nutrientes para os inferiores hierárquicos da cadeia); nas laterais, o núcleo propriamente dito, matriz geratriz original: duas bancadas/camas altas, à primeira vista, acolchoadas com preparados de materiais diversos. Exame mais detido porém revela que abrigam/aninham miríades de ovos, casulos, ninfas, larvas em contínua e industriosa metamorfose e mutação - o instantâneo espetáculo da vida em plena atividade geracional. É a afirmação titular - o Drang zum Leben, o impulso da vida, a vontade de viver, "a insistente persistência da memória vida?" - pergunto subitamente a Tunga, ali, compenetrado, supervisionando tudo, e ele anui e sorri iluminado. Sabe que o espectador será testemunha viva do que convencionamos nomear o milagre da vida. Será difícil ser o mesmo depois - o observado afeta o observador (e, embora não haja provas do contrário, intuitivamente nos inclinamos a crer que vice-versa também - desde que, é claro, tenha o observado ciência estar sendo observado).

A terceira sala é como se fosse uma réplica da primeira, com o diferencial de ser em escala amplificada, industrial - produtos e sub-produtos, sob luzes altas: luvas de laboratorista, peles de rãs gigantes, gigantes asas, exagerados alfinetes e bengalas - tudo em gigantes dimensões. É a segunda e transgênica metamorfose. O som também é outro. O exultante mantra agora se transmutou para o crescente e incessante zum-zum das moscas ( faltando saber se livres ou em cativeiro - haverá sutis gradações na altura, na intensidade, no timbre?! Perceber-se-á lamentações, choros, gritos e gemidos lancinantes?!).

Findo o périplo, tornei a percorrer as salas por mais de uma vez e hipnotizado me detive aqui e ali, (bem) mais demoradamente diante das camas do milagre em seu ir e vir, vestir e despir e evoluir, entrar e sair, subir e descer - o processo. Senti falta de um microscópio que, montado sobre, me permitisse maior e mais visceral visibilidade das almas laminadas acamadas sobre lâminas - sua mais profunda e derradeira agonia. Refleti então sobre o conjunto da obra e a percepção dominante foi a de que não se tratava de uma criação confessional e tampouco metafísica. E também não era a exposição de um paradigma visual, mas a proposição de um enigma intelectual, com viés de ousadia estética. Uma coisa era certa - nunca mais seríamos os mesmos. Lembrando do que, feliz e coincidentemente, Alle Kunst escrevera outro dia sobre a arte contemporânea não possuir antecedentes, esquemas, meios, completei que, transcendendo o estreito da arte convencionada, ela invadia, permeava, abarcava e se derramava sobre a totalidade da vida. Era uma ciência e era uma filosofia, sendo aquela dileta filha desta. A subliminar de Tunga, parecia estar nos confrontando basica e fundamentalmente com a compaixão para com os viventes. Tornando óbvio o absurdo do oculto e do apócrifo. Pithágoras e Sidharta em harmônica conjunção. Ooooooooooom! Chaire!

Foto: divulgação

Rio de Janeiro - 2006

©Alexandros Papadopoulos Evremidis > escritor crítico > E-mail


O mistério e a paixão de Lia Rodrigues

©Alexandros Papadopoulos Evsemidis*

Quando dias atrás escrevi "nunca mais seríamos os mesmos", mal sabia eu o que nos estava reservado daí a uma semana na performance da diáfana de tão etérea coreógrafa Lia Rodrigues e de seus modelares bailarinos. Mentira!! eu sabia sim, suspeitava ao menos. Só não fazia idéia da extensão do avassalador impacto a que seríamos submetidos - uma porrada!

Na verdade, disse eu não saber para logo me desmentir por ter lembrado que há alguns anos eu tinha assistido à exibição dela Nu que, embora coreograficamente bastante incipiente e reduzida, denotava "in germine", mas inequivocamente, um pouco do muito do porvir - da envolvente e sedutora, motora e móvel construção arquitetônica que... qual olímpica aracné ela teceria e nos quadrantes amarraria. Para nos capturar e antropofagar.

De fato, aquele era um "Soldado! Formação!" (metáfora do que patetica e ufanisticamente chamamos de "nossa civilização"), agora marcha, soldado, cai no chão, se joga, se revira, se tortura, se machuca, estrebucha, agoniza, expira, tente ressuscitar, nascer de novo, como novo. Temos um corpo (o diabo) que nos carrega e o usamos variavelmente, extraímos até prazeres solitários dele, mas não o doamos, não o conhecemos e pouco, nada, o amamos.

Lembro ainda ter, na ocasião, conversado muito en passant com a Lia e de lhe ter pedido/sugerido que levasse a libertária mensagem do corpo que sofre para gerar a mente para todos os países do mundo e a todos os reinos do universo e os conta/minasse/giasse. Dá uma força, ela suplicou humilde e ruborizada. Desconhecia ela estar toda a força com ela, nela, em seu plexo ventral, uterino?! Não mais importa - agora como então está tudo re/confirmado.

Chega! já disse. Vamos ao que interessa - os bailarinos bailando a breve vida, um lampejo apenas, e obra das laminadas almas entomológicas. É mas sobre isso nada direi. E por uma simples (?) razão: antes mesmo da celebração, após quatro curtas horas, terminar (mas já??!!), prometi a mim mesmo e aos amigos que a tal me instaram, que em hipótese alguma profanaria o indescritível, o sublime, com vis palavras.

Sim, ali estava se processando uma sacralizada ocorrência ancestral primeva, pertencente aos domínios do silêncio, existente antes mesmo do surgimento das palavras e ainda depois de elas, destituídas de significado, murchas e esvaziadas, clasmocitosadas, reduzidas a inúteis garatujas, deixando de ser significantes do que quer que fosse, mas que não foi, finalmente silenciarem. Formas despossuídas, vestígios arqueológicos, que seja, mas só na melhor das versões. Nada direi também porque tautológico para os felizes assistentes e sádico para os pobres ausentes seria.

Moira porque Maktub. Se antes eu epitomizara que nunca mais seríamos os mesmos, imagine agora, depois dos iminentes riscos de síncope e de todos aqueles meus (e de todos os outros) gemidos e suspiros em sintonia com o pulsar dos corações e o ritmo das ofegantes respirações daquelas laminadas almas e dos sacerdotais e compenetrados bailarinos em exasperado e exacerbado e desesperado e exaltado e exultante "Drang zum Leben".

Silêncio. É nele que impassível o pêndulo marca os incessantes instantes do doloroso nascimento, do angustiante crescimento, da vida, da morte - todos em poder das três p/a/o/rcas, as Griai bruxas. Tendo dançado a laminada alma de Tunga, a coreógrafa mobilizou nossa calma alma (repleta de lama). Ave, Lia, moriburi te salutant.

Rio de Janeiro - 2006

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