| Suzana Queiroga | "In Between" |
Suzana na casa (substituir por cama) do Chronos.

©Alexandros Papadopoulos Evremidis*

- Suzana, a sua pintura começa lá embaixo - digo, apontando do topo da elevação das Cavalariças para a Rua Jardim Botânico, e ela me olha como se óbvio fosse. Sabe portanto o que faz e o faz muito bem feito.

Estou no portão de entrada do Parque Lage. Por força do hábito, olho para a frente e para o alto, e o que vejo me faz crer, por instantes, ter errado o endereço. Sim porque, no alto da elevação onde eu esperava divisar as cavalariças, recortada contra os céus, agora havia uma fantasmagoria, uma espécie de cidade ideológica de Platão ou a divina mesmo de Agostinho. Uma e/ou outra intensamente iluminadas com gradações e nuances de vermelho avermelhado e rosa rosado, sem esquecer do avioletado. (Não descambar para o clichê de dizer que esfreguei os olhos e tornei a olhar; dizer simplesmente que,) como houvesse figuras humanas em adoração na base da celestial ideópolis, decidi ir até lá para conferir.

Estou subindo a diagonal ascendente das cavalariças e, estranho, a sensação que de mim se apodera é a de estar ascendendo também verticalmente. E mais - a de estar sendo envolvido e tingido pela aura daquela pintura/luz. É esse o poder da arte de Queiroga, penso, o de nos elevar e enlevar. Artista polivalente, ela maneja com maestria não apenas a cor-pigmento - que lá do núcleo das cavalariças concretamente se projeta até a mim -, mas também a cor-luz - esta que agora me subjuga por colorir o céu - e ainda a cor-palavra cujo uso léxico e sintático, a par com o conceitual, em mim, em dada ocasião, despertou imensa admiração.

Cheguei. E a primeira coisa que fiz foi ver der perto a origem daquela órfica luz/cor. Era resultante de uma série de potentes holofotes, macetados e estrategicamente direcionados para a fachada da velha construção que artistica e pateticamente ostentava as marcas e as feridas causadas por Chronos - único deus verdadeiramente soberano e imortal, a quem, por mais que os fanáticos gnósticos digam e jurem, nada nem ninguém escapa, nem mesmo os demais deuses (não é verdade que Nietzsche os tenha matado, assim como Foucault, o homem; foi Chronos o assassino, e em ambos os casos). Queiroga soube admiravelmente enquadrar, destacar, salientar e apontar a morfologia dos padrões, únicos, por aleatórios, e das variantes texturas. O esverdeado mofo alegremente se alastrando. O reboco se desbocando, se desprendendo, se despencando e, indecente, revelando a intimidade dos esqueletos, aqui e ali, nus e envergonhados. Percorri, na penumbra (para maior ênfase, adjetivá-la de escura), as laterais e os fundos do prédio e não pude deixar de lastimar não ter Queiroga iluminado/pintado também a eles, "empacotando" calorosa e carinhosamente a arquitetura inteira e criando assim uma gigantesca escultura luminosa "all around". Descaso? Pouco caso? Discriminação? Cuidar apenas das aparências? Cartões postais da Avenida Atlântica cuidadosamente ocultando as favelas da (sintomática) Babilônia, do Pavão mais seu diminutivo (se pavoneando não se sabe de quê) e do Cantagalo (que tendo sofrido um corte não mais canta, só conta os mortos e chora)! Deixe, estamos no terreno da filosofia, não das políticas sociais.

Entrei no primeiro ex-estábulo, está bem, cavalariça. E no que entrei, dei de cara com aquele painel políptico de dimensões homéricas/heróicas, cuja primeira aparição pública, e na ocasião solitária, logo após a gênese (creio), eu tinha testemunhado, há uns dois anos, na Galeria LGC. Lembro ter me sentido um perfeito idiota magnetizado ou encantado como um infante pela primeira vez num espetáculo de magia, de lanterna mágica. Eu fixava a tela, eu me aproximava dela, eu me afastava dela, eu me posicionava nas diagonais e nada mudava, isto é, tudo continuava mudando de lugar, os patches cromáticos deslizavam e se deslocavam, o que me deixava maravilhado e maravilhosamente tonto. Não que eu já não conhecesse o efeito, mas a arte tem também esse poder - cada vez é a primeira vez. Um trompe l'oeil? Não, atributos e propriedades. Explico:

(Inserir observação para os não leigos saltarem o parágrafo seguinte).
Sob a ação da atração engendrada pelo primordial Eros, tudo no universo tende a se unir. Os átomos se unem e formam moléculas, depois células, tecidos, órgãos, aparelhos/sistemas, organismos, seres enfim que se unem e cujos espermatozóide e óvulo também se unem para produzir um novo ser e apd (assim por diante) ad infinitum. Agora imagine um triângulo isóscele inscrito num círculo. No vértice inferior esquerdo está o vermelho; no superior, o amarelo; e no inferior direito, o azul. Essas são as cores primárias que se unindo, exatamente como os seres, de duas em duas, produzem outras - o vermelho e o amarelo, o laranja; o amarelo e o azul, o verde; o azul e o vermelho, o violeta. Essas resultantes são as complementares e se situam biunivocamente na diametral oposta daquelas primárias que não participaram da criação de cada uma delas. Não pára aí: as complementares também se ligam às suas vizinhas e produzem as terciárias, depois as quaternárias, a infinita gama.

O que Queiroga fez: ela pegou a complementar verde e com ela pintou/implantou alguns tetrágonos brilhantes, aqui e ali, sobre a tela, não sabemos se aleatoriamente ou segundo códigos semióticos secretos. Depois, sobre o restante da superfície, aplicou a primária vermelha, que não participou da criação da "outra", e pronto estava o palco: os dois atores/cores começam a vibrar e a bailar - um esquisito e assombroso pas-de-deux, configurando contrastes, avanços e recuos alternados, progressos e recessos, atrações e repulsas, namoros, amores e ódios, casamentos e divórcios.

"Suzana subiu pelas paredes" - foi esse o primeiro pensamento que me assaltou, ao entrar na segunda galeria/cavalariça, comunicante da primeira, e lançar o olhar para a parede frontal. Eu disse inclusive isso, lá mesmo e no ato, para a Anna Bella que estranhou: "Mas essas pegadas não são dela!" Não? Não foi ela que as fez? Metáforas dissonantes. Estávamos nos referindo às depressões, mais ou menos profundas, salpicadas pelo imaculado plano da parede. Está bem, as pegadas, de fato, não são realistas e portanto não representam solas de sapatos e tampouco de pés descalços, com calcanhares, arcos, dedos e tudo; na verdade, mais parecem toscas pisadas de algum hipnóbata megatério pré-histórico.

Já sei, na busca pelas últimas conseqüências, Suzana se empenhou em escavações geo/arqueológicas, melhor, cronológicas. Foi até o osso e até o âmago, ao interior do átomo, onde assentada no arco de algum orbital, quedou-se em hierático silêncio a observar o comportamento do tempo que ali é outro - pleno de certas incertezas. É impossível ficar passivo diante do mistério e não se deixar por ele afetar - contaminar.

Foi quando uma movimentação quase imperceptível chamou minha atenção para a parede da direita, contígua à frontal. Brotavam dela, como se salientes tubérculos, alguns sólidos geométricos (belos per se; mais, sublimes, no dizer de Sokrátis) - cubos, trapézios, esferóides personalizados; estes, por sinal, de avassaladora e sedutora sensualidade, a ponto de eu me sentir obrigado a lhes auferir, com a palma da mão, o volume, a textura, o calor, a intensa pulsação que delas se irradiava. Sim, sim, parecia haver um diálogo entre as reentrâncias de antes e as protuberâncias de agora, um outro pas-de-deux, "múltiplo", um baile inteiro. Uma idéia prosaica, de côncavos e convexos, se impôs: o que foi feito do entulho das escavações? Imaginei, então, que Suzana cuidadosamente o recolheu, serenamente o acolheu, carinhosamente o triturou, umedeceu e, obtendo material plástico par excellence, artesanalmente - com as próprias mãos, socorridas pelo tempo -, o modelou para criar os tais sólidos im/plantados na segunda parede.

Parêntesis, aberto à direita: (Meses antes, quando eu soubera que ela merecidamente fora premiada com as cavalariças e que passaria três meses por conta, tomado de genuína compaixão e afetiva solidariedade, em meus psicodélicos devaneios, a vi enclausurada, andando para cima e para baixo, gemendo, urrando, delirando, subindo pelas paredes ou entrando nelas, sendo possuída por depressões intensas e euforias agudas. Agora, ali, perguntei se ela tinha sentido solidão. "Não, - respondeu ela, inocente e cândida -, eu tinha seis assistentes". Tive que forçosamente conter e reprimir o impulso de replicar que nem mesmo multidões garantem a ausência de solidão no criador, que não cria dor, mas a sente de modo avassaladoramente visceral - "histérico"!

A terceira galeria das cavalariças é uma solitária hermeticamente fechada. E isso apesar de gozar de duas aberturas envidraçadas, em paredes opostas, e de duas janelas altas, também envidraçadas, no lado paisagem, por onde certamente os cavalos apreciavam o então ainda bucólico teama. Lá dentro, um silêncio grave e sideral. E em meio a ele, no centro espacial, suspenso encontrava-se, e aprisionado, por Suzana, deus - Chronos, o cruel e monstruoso senhor do tempo, o devorador dos próprios filhos. Até que Réia (o fluxo), sua mulher, o enganasse, entregando-lhe, para ser deglutido, envolto em cueiros, não o filho comum, Dias (o dia), mas o pedaço de uma rocha. Rocha que, tendo "caído" mal, o fez vomitar e cuspir de volta à vida todos os filhos passados. E foi assim que ganhamos a eternidade, ainda que de pai/mãe para filho.

É dele, do Chronos, que Suzana nos quer agora dizer, e de modo direto e impactante - sem elaborados subterfúgios ou elegantes malabarismos sofismáticos. Mas como representar o mais poderoso dos deuses (na verdade, único) {e que vai com a gente [está na gente, (nós somos ele)], para onde a gente for e o tempo todo?} Como comunicar o que todos e a toda hora sabem - que o tempo passa, (passa dramaticamente devagar hoje), que o tempo corre, que voa, pára, fica suspenso, é dinheiro, não volta atrás, é perdido (?) sem chances de recuperação (esqueça, Proust), (memento Diogénis que descartou Aléxandros, por este não lhe poder restituir o que lhe estava subtraindo)? Seguir a tradição e fazê-lo manifestar-se com cara de Leonardo, as barbas brancas pingando sangue? Como uma clepsidra? Como água evaporando ou virando gelo? Com a poética de um grão de feijão, hoje aninhado sobre algodão úmido e amanhã, qual Suzana, trepando na parede, mas o que estou dizendo?!, no lunático espaço? Uma folha verde ressecando? Fogo ardente? Nossa carne se deteriorando? Alzheimer? Tenho uma idéia que, embora sensacionalista e escandalosa, pode ser melhor e mais apropriada para o Tempo, - que tal uma bomba-relógio?!

Suzana (doce ana/graça) ousou e, como dito, seduziu o deus e por ele deixou-se seduzir, aprisionou-o, acorrentou-o e dependurou-o do teto, na forma de uma super-estrutura férrea e no formato de um prismático trilátero vazado (um tera-fallus) ou uma invertida pirâmide elementar, de vortex agudo como se ponta de lápis/grafite. (Evitar, por inoportuno, a todo custo evocar Foucault e José Resende). É com este que, impiedosa e incansavelmente, escreve e desenha, por meio da sombra que lança, em penta, hepta ou perfeitos eneagramas, o tempo e o destino dos anima e dos inanimados (tendo predileção mórbida pelos desanimados). Sim, porque, como todo bom tempo que se preza e faz jus ao substantivo, ele não fica aí paradão - ele se move o tempo todo. Mas também, contrariamente ao que fomos levados a crer, não num fluxo contínuo. Como se perna secundária de um relógio analógico, ele anda, pára, anda mais um pouco e volta, para andar e parar nova e ininterruptamente e ad infinitum. E ai de quem estiver em seu caminho (quem não?) - apontada a ponta e atirada, qual rede, a sombra, a Griá Átropos parte o fio e o infeliz cai fulminado e é engolido pelo tempo que, sendo o mesmo, agora é outro - sem tempo. De fato, há sobre o chão, a centímetros de seu nunca satisfeito bico, no interstício mesmo do tempo e do espaço, exemplos disso - pequenas peças metálicas jazendo derretidas e deformadas (deixar claro que amorfas não há); antes, podem ter sido soldadinhos de chumbo para gáudio dos infantes.

"Enquanto isso", e em devido tempo, Suzana dá um tempo ao tempo por um bom tempo ... E será assim fortalecida para plenamente assumir e levar a bom termo as funções a ela destinadas pelo tempo, que são as de "ciberneta de artistas". Cum laude e com acento para ocupar o assento!

Fotos de Luciano Bogado.

Rio de Janeiro 2004.

©Alexandros Papadopoulos Evremidis > escritor crítico > Email


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