| Nuno Ramos - Uma noite |
Espanto que não espanta - imanta: o sábio e a anta!

©Alexandros Papadopoulos Evremidis*


A pessoa do artista:
Nuno é o irmão que todo mundo gostaria de ter - educado, gentil, acessível, solícito, informal, bem-humorado, uma figura new age - nem ficou constrangido ou aborrecido e, espantoso espanto! nem surpreso, quando, referindo-me às suas obras ali expostas, murmurei: "Não fossem arte, seriam sacanagem". "Não fossem sacanagem, seriam arte", retrucou ele em cúmplice inversão e ainda citou um gaiato que teria se saído com essa: "Não fossem sacanagem, seria sacanagem!". Que sendo, não são.

O artista da pessoa:
De fato, as esculturas de chão, em lânguida tensão, apesar do frio do mármore, do metal e do vidro, de que são construídas, exalam inequívoco sensualismo - foi o quase unânime comentário dos intrigados e afogueados espectadores - sobretudo das mulheres. Sim, elas viam no leitoso conteúdo dos vítreos recipientes, que estrategicamente as encimavam, sêmen, sêmen em abundância. Está certo, não há como contestar, alegando tratar-se de vidro, cal ou mármore liquefeito. Ou, quem sabe, leite mesmo.

Brincadeiras e sacanagens à parte, o fato é que cada escultura é composta por duas placas paralelas de impoluto mármore, recortado dinamicamente segundo rigorosa e engenhosa geometria, que, inclinando-se como telhado de duas águas para a diagonal interna, se encontram e são mantidas unidas por barras de cobre inseridas em seus baricentros - vasos comunicantes e excelentes condutores do que quer que se queira conduzir!

Há uma biomorfia em exibição e ela lembra arquétipos do masculino e do feminino: aqui, uma mulher esparramada de costas pelo chão tem o buraco de sua fechadura/abertura no lugar adequado e seus seios fartos de leite surgem como que da boca do vulcão e apontam para os céus; ali, um homem, basicamente da mesma estrutura e postura, orgulhoso ostenta os bagos recheados de sêmen e a vara pontuda e ereta. Estranhamente, porém, apesar da aparência de saudáveis espécimens, do vigor e da pulsão energética que os percorre, elas também nos passam a sensação de congeladas esculturas tumulares, dessas que representam papas e reis defuntos, estendidas sobre suas sepulturas nas sombrias entranhas das catedrais. Chama atenção a subtração dos corpos - o que deles resta é apenas o vazio abarcado por capas e carapaças e o essencial instrumental da procriação. Um espetáculo, sem dúvida, heteróclito, insólito, anárquico. Em qualquer das hipóteses, o impacto estético e a empatia são imediatos e só não diremos serem perfeitas porque o perfeito tende ao zero - zerar tudo e começar tudo de novo ad stupidum aeternum.

Nuno Ramos, artista multitalentoso, transita, há tempos e com igual desenvoltura, por variados meios e linguagens. Lembro ter ficado profundamente impressionado com algumas pinturas dele - embora no caso dele pintura seja modo de dizer, já que a pintura que sai das mãos dele, embora ainda plástica, não é a da tradição - tinta, pincel, tela. Ele usa um semnúmero de materiais construtivos - dos mais pobres ao mais nobres - que resultam em uma espécie de caixas-objetos de parede. Quadros havia em que predominavam elementos terrosos, ferrosos, sangüíneos. Em outros, madeiras e metais dramaticamente compactados davam o tom de alguma tragédia - como se os céus tivessem desabado e achatado as humanas habitações. Nestes, agora, da presente exposição, mais "otimistas e esperançosos", a composição se dá por meio de alumínio, acrílico, pelúcia, espelho, vaselina e cera. Constituem, sente-se, uma unidade narrativa, significativa e indissolúvel, um todo orgânico, uma quase água-viva. Viva!

Diz-se, de fato, que o fio condutor dessas sofisticadas e sugestivas criações remonta à espantosa estória propedêutica da Sherazade das Mil ... (de onde o título da exposição - "Uma Noite") que, à medida que "dopa" seu carrasco com o suspense da sua novela para a todo custo conseguir uma sobrevida, consubstancia o insano (ainda que natural) desejo de eternidade de todo nós - adiar o corte do fio pela implacável Átropos a serviço do cruel devorador Chronos, o que por sua vez constitui irrefutável prova da vida ser bela. Ou será apenas o medo da morte?! Pergunte ao Nuno - também ele possui as chaves e os códigos e as permissões. Avesso a catástrofes, não imune, mas vacinado, talvez ele diga que o sol nascerá amanhã, ainda que por mero hábito. E não adiantará lembrar que a entropia, logo ali, espreita, nem alegre nem triste, apenas poeta e arquiteta - cumpre, diz, sua natureza. Enquanto isso, não deixa também de ser uma metáfora de que o artista, qual a heroína, heroicamenrte, terá que a cada dia criar uma obra-prima para assim também ele postergar sua própria desconstrução.

Nuno sabe ser cada risco uma valoração. Que cada palavra, um signo sonoro, como essas com que ele marca, qual gado, suas criaturas, proferida, transcriada em qualquer meio - gráfico, pictórico, volumoso, instalado, cantado, dançado, interpretado, performado, é um dedo na ferida que o humano lambe e se sente feliz. É ele quem o diz. E o dito é feito.

Bem, mas isso é conversa mole pra boi dormir abraçado à vaca, ambos sonhando o mesmo sonho: amorosos passeios por verdes e floridos pastos, a chegada da maturidade, a plenitude da beleza física - pra quê! essa é a senha e logo serão tocados para o esfactério (será que dói muito? aperta minha mão! me abraça, amor!), levarão cuteladas, serão esquartejados, entrarão sucessivamente numa fria e numa quente, serão devorados por quem (amorosamente! jura) os criou e defecados para virarem adubo para novos pastos, para novos bois e vacas pastarem. No círculo vicioso da dança da vida e da morte, Deus não faz falta nenhuma.

Rio de Janeiro 2006

©Alexandros Papadopoulos Evremidis > escritor crítico > Email


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