"COM QUEM ESTÁ FALANDO MARIE LOUISE?", de M. L. Wilson

Marie Louise e o canibalismo da ganância
(Um Comentário de Bruno Massiron)

A sobrevivência é terrível, não deixa lugar algum para o sentimentalismo. Mas o que sucede quando se dá ênfase a qualidades perniciosas? A falta de escrúpulos é um pesadelo, porém raras são as pessoas que reconhecem tamanho perigo. No caso de Martin Hutter se agravava, ele era um homem com idéias e possuía coragem suficiente para colocá-las em prática. É um egocêntrico, louco perigoso, sem escrúpulos. Enfim, tem um caráter deplorável.

      É na sombra do escrúpulo que está plantada a semente da história da decadência de uma família que irá arrepiar-lhe os cabelos. Um livro pavoroso, mas fascinante. Repleto de artimanhas e envolvente, bem arquitetado, elaborado com a precisão de uma teia de aranha. E se prende nela, debate-se para soltar-se. No decorrer da leitura, constantemente você pensa que no meio de tanta maldade não poderá existir mal ainda maior ao daquele observado nos capítulos anteriores. Mas você se engana; porque existe, nada é perdoado nesse livro aterrador. É exatamente o que assusta nele, a autora é implacável. Na época atual em que o conceito se propaga na base do aforismo de que “o malvado realiza aquilo que o bondoso sonha”, ele ganha uma especial preponderância, que se sente a fundo. Portanto, o bem não existe nesse mundo, considerando que se peca também por pensamento. Essa ilusão do bem já é cortada no começo da história. Assim, conta-se com a inocência, visto que a escritora nos constrange a pensar no pior a todo momento; a partir das dez primeiras páginas. O mal existe, está sempre presente, espalhado com o vento até no ar que se respira. Em resumo, todos nós possuímos uma parcela dele correndo nas veias. No livro ele recebe um nome especial, chama-se ganância. Uma aids que anda matando milhões de seres humanos neste planeta. A antiga metáfora dos sete pecados capitais revela-se uma brisa tépida comparada aos gigantes da índole atual. Em Marie Louise, adquire-se uma noção clara a respeito dos Golias que enfrentamos. Eles atingem a uma nova dimensão do verdadeiro terror a que estamos expostos, superando tudo que já presenciamos ou ouvimos falar a respeito da decadência do caráter humano.

Afinal, a gula diante da crueldade é uma criança recém-nascida, inofensiva, incapaz de mover-se. A preguiça frente ao egoísmo é um mosquitinho que nem sequer incomoda. Finalizando, a luxúria comparada à inveja ou à indiferença é pálida como um boneco de cera. Pergunto-me se não está na hora de estabelecer uma nova tabela para os tão superados e inócuos pecados capitais? Recorrendo aos antigos critérios, Marie Louise nunca estaria em condições de assustar sequer um rato. Foi necessário buscar a escória moderna da terra para escrever um livro desse caráter. Ralé essa, que a escritora reúne a metade debaixo do mesmo teto e larga a pobre criança indefesa entregue as hienas. Não foi sem razão que toda vez que a menina entrava em cena o nosso coração disparava, forçando a nos transformar em corvos agourentos. Terminamos a leitura do livro mais deprimidos ainda, sentindo um redobrado mal-estar em conseqüência do desfecho final, que sem dúvida vai surpreender a todos.

Wilson desenvolve uma capacidade excepcional de colocar as pessoas numa situação impossível. Parece um mau carma do qual ninguém pode se livrar, tudo ao redor é negro, assustador, “ou fica com os fantasmas ou nas nossas mãos...” Ali estavam dois assassinos frios ameaçando um dos personagens, prontos para torcer-lhe o pescoço num golpe mortal sem qualquer remorso. Saída existia apenas aquela que levava à morte. E a vítima se desespera encurralada numa armadilha que a falta de escrúpulos ocasionou.

Quando a autora nos pediu para escrever uma avaliação da obra, foi necessário ler esse thriller de horror e suspense mais duas vezes, para poder sair do clima sombrio em que ela nos força a penetrar por meio de truques de mestre, assim dar o justo valor ao livro que, seguramente é um trabalho surpreendente, principalmente considerando-se que é o seu primeiro livro. Esperamos que continue a escrever.

Marie Louise é um livro tenebroso. Os pecados são feios, demasiadamente reais e atuais para serem ignorados. Somos obrigados a encará-los de frente. Após a leitura, durante algum tempo você não será mais o mesmo, ciente daquele monte de perversidade que gera um profundo mal-estar. Outra denominação para a obra seria insatisfatória pelo menos para mim. Quanto mais eu refletia a respeito do tema abordado, o pavor se estendia. Por trás da conclusão, talvez esteja a pergunta invisível, maliciosamente escondida no meio das 470 páginas que nos incomodam tanto quanto a picada de um escorpião venenoso. Nela nota-se uma sagacidade macabra, para não dizer má intenção por parte da autora. Só percebem naturalmente, aqueles que conseguem sair do ambiente de horror e suspense gerado e analisam o conteúdo friamente. Wilson não pergunta: “O que você faria para não perder a sua fortuna?” A situação é realmente desoladora, o beco é escuro demais, a saída não se vê. Aquela possibilidade de escapulir de mansinho está fora de cogitação. A pergunta é feita direta e maldosamente: “O que você faria para recuperar a sua fortuna?”

Portanto, qualquer análise comodista é imediatamente rejeitada pelas ocorrências que vão se amontoando vagarosamente sem que se perceba, carregando seu discernimento cada vez mais para um mundo em que a bondade chega a ser uma regalia especial, se for concedida. Os fenômenos para-normais que são lidos é o que menos assusta, mas sim a realidade do caráter do homem moderno, o ser horrível em que nos transformamos, ou mesmo que sempre fomos e se revela em nós como um câncer saído das entranhas e descoberto tarde demais. Wilson mostra que o demônio é mais real do que supomos; descobre-se nos atos, é fruto de mentes degeneradas nas quais o supranatural, os fantasmas, chega a ser insignificante. São réplicas terrenas daquilo que fomos, o nosso verdadeiro rosto no espelho da alma. É desse modo que os íncubos nos assustam, podemos estar tomando conhecimento do nosso futuro. E com que finesse a autora nos leva ao fundo do abismo.

Mas quem é essa pequena tão grande, que promete arrepiar os nossos cabelos?
Marie Louise, uma simpática e meiga menina de cinco anos, fica órfã repentinamente. Os pais, Stephen e Yvonne Eichenberger, um casal de biliardários suíços, perdem a vida num acidente de automóvel muito suspeito nas montanhas de Zurique. De um momento para outro, ela se torna a órfãzinha mais rica do país, herda uma fortuna incalculável.

O comissário Honegger do Departamento de Homicídios, um competente policial, é encarregado de averiguar o caso. Já no início ele suspeita da morte trágica do casal e imediatamente começa a investigar. Um ato criminoso não era de se excluir. Poderia tratar-se inclusive de um atentado político, visto que o casal era amigo intimo do futuro conselheiro do Cantão de Zurique, um jovem e dinâmico político simpatizante do Partido Comunista.

Havia ainda a concorrência industrial que gera às vezes uma infinidade de inimigos. O comissário preparava-se para se concentrar nessas duas possibilidades, quando vem a saber da existência de Martin Hutter, cunhado do morto, tio e único parente de Marie Louise. Honegger tem um pressentimento terrível de que outra tragédia poderia acontecer. Ao investigar a vida de Martin Hutter entra em pânico. A menina corria um grande perigo; esse pensamento perseguia-o dia e noite. Inicia-se uma luta desesperada para proteger a criança. O tio, homem perverso e sem escrúpulos seria capaz de tudo para se livrar da menina. Havia muito em jogo, sobretudo dinheiro em grande quantidade.

O perigo, no entanto, vem de onde menos se espera; o que antes parecia inocente, transforma-se num inimigo mortal. A mansão dos Eichenberger sofre uma enorme metamorfose após o falecimento dos proprietários. Duas semanas depois do enterro, o único desejo dos intrusos que ali passaram a viver, era aprontar de novo as malas e desaparecer o mais rápido e o mais longe possível.

Quanto ao comissário Honegger que investigava o caso sem um momento de trégua, corre tudo relativamente bem até o dia 23 de dezembro, a antevéspera de Natal. Então sucede um outro acidente terrível. De repente ele é confrontado com uma interminável série de mortes, uma das quais acontece praticamente na presença dele.

A historia recebe o Cantão de Zurique como palco. A estação do ano è uma das mais belas, o outono. Embora surjam às vezes dias cinzentos, úmidos e nublados, jamais são nostálgicos. Na Europa ele costuma ser um espetáculo à parte para todos que observam a natureza. É exuberante na sua cor verde escuro contrastando o claro aveludado e amarelo abóbora. Logo em seguida cai a neve com extrema abundância. Se presume que as datas tenham sido entre 1982 a 85, ocasião em que o inverno era de fato rigoroso e cobria a cidade de neve como descrito no livro. Mas a autora escreveu-o depois. Alguns personagens ali presentes podem ser reconhecidos e comparados com pessoas importantes da época. E nos faz supor certamente que ela tenha se inspirado neles, especialmente o futuro conselheiro do Cantão de Zurique. Existem ainda vários vestígios, dos quais não se permite entrar em detalhes aqui.

O livro foi idealizado no modelo do –O Exorcista de William Peter Blatty–mais–O Iluminado de Stephen King–, embora se perceba um minguado relacionamento entre eles. As obras não podem ser comparadas de modo algum, seria irrelevante. Visto que somente foram aproveitados pequenos truques sem importância. Mas o sistema do Exorcista encontra-se presente, garantem os espertos do cinema que moram aqui. Uma coisa é certa, Marie Louise é superior ao livro do mestre do horror americano. A construção é melhor que de O Exorcista, todos concordam também. A obra oferece 267 paginas de tirar o fôlego, absoluto horror e suspense que alcança intocável na sua impertinência a última página. Desses livros de capa preta como costumo apelidar, talvez o único em condições de se medir com essa pequena em matéria de ação é (A Profecia de David Seltzer) leitura que não se larga até chegar o fim.

A obra foi escrita no estilo clássico, relembra em certas passagens os mestres do começo do século passado. Adapta-se bem ao caráter e à rígida etiqueta suíça que deixa pouco espaço para inovações no seu modo de ser. Wilson consegue penetrar facilmente atrás da distância que eles costumam interpor aos estranhos, outorgando-lhes um feitio moral até bastante simpático.

A estrutura é simples, mas sólida, como se percebe em quase todo bom livro. O enredo se desenvolve em cima de um título quase ingênuo, relativamente doce para o pesadelo que vamos enfrentar. Marie Louise possui aquele carisma. Uma presença forte dada pela eloqüência que a narração empresta, e se sente falta em certos livros bem escritos, mas monótonos. Os textos são elegantes, diálogos abertos, modernos, típicos da raça alemã que aborda seus problemas sem preâmbulos e clichês. É uma das maiores qualidades da obra, o conhecimento da raça alemã. Em suma, teria sido um erro grave se ela tivesse dado um caráter sul-americano aos personagens como fizemos nos nossos livros. A menina nos surpreendeu de todos os modos; passou com a força de um vendaval sobre nossas pretensões de autores europeus que acreditavam estar numa posição privilegiada só pelo fato de morar no estrangeiro. Motivo também que levou a contribuir para que terminássemos a leitura mal-humorados. No final, ficamos petrificados olhando nossos trabalhos brasileiros com os nomes dos personagens em alemão. Nada existe de mais ridículo, foi a frase que passou pela nossa cabeça. Se buscássemos uma resposta, seria fácil decifrar a deficiência: enquanto vivíamos metidos em grupinhos de brasileiros, a Wilson se infiltrou no meio dos suíços e outros estrangeiros europeus.

A riqueza da biografia dos personagens é uma delicadeza. Existem momentos nos quais esquecemos que lemos um livro de horror. Toda história neste gênero possui sua casa mal-assombrada. A dos Eichenberger é descrita de modo especial. Predisposta à simpatia ou antipatia, reage como um ser humano à afabilidade e violência; dá o que recebe. De cima ela olha mal-humorada os intrusos subindo as montanhas. A autora nos impede de escapulir dos detalhes, somos empurrados para o meio da história, sente-se com a casa a presença dos hospedes, os quais, a mansão em pleno poder de seus maus instintos come a carne e rói até o último osso das vítimas sem a menor piedade.

O comissário suíço passa por momentos difíceis, quando aborda as células cinza, há uma enorme ausência de vínculos entre ele e o famoso personagem de Agatha Christie. Nem sequer nos recordamos dele, tamanha é a distância que os separa. Honegger esta exausto, morto de tanta preocupação, com uma suspeita terrível que não lhe dá sossego. Enquanto Poirot é um vaidoso que se vangloria, menciona-as pela vaidade do ego. De certo modo, ele tem alguma semelhança é com o padre Merrin. Ambos têm uma consciência nítida do mal. Embora combatem-no diversamente, sabem que existe e não perdem um segundo sequer com decisões sem sentido. Eles conhecem as máscaras que usa, mas no fundo, é como o padre Merrin diz no filme e não no livro, o mal é só um. Seja qual for o demônio que esteja presente ele precisa morrer. Wilson desce com a mão da justiça sobre eles, onde cada porta que abre, cada esquina que se dobra, ali esta esperando a morte.

Bruno Massiron


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