| Marcos Cardoso |
A grande arte do pequeno descarte

©Alexandros Papadopoulos Evremidis

Em meu íntimo, eu sempre soube que um dia teria que escrever algumas linhas sobre as criações do Marcos Cardoso - esse rapaz dostoievskeano de aparência franzina, olhar cintilante, febril, arguto, astuto e ágil, de quem está constante e apaixonadamente em busca de algo que tanto pode significar uma palavra, um gesto, uma afeição, o tempo ou o paraíso perdido. O elo!

Mas que fique desde já claro - dizer da arte dele não seria favor nenhum a Cardoso; antes a mim, movido e comovido que me senti no primeiríssimo contato com uma obra dele. Foi há uns dois anos, no SESC Copacabana - uma peça do vestuário feminino, elemento integrante de uma série feita toda ela de guimbas de cigarros, como se elos - o elo! - unidos um a um por meio de linha de costura e performando o histórico dos enganos e dos desenganos do que orgulhosamente chamamos de "nossa civilização", da destruição e da despermanecência, da enferma efemeridade, da morte - memento mori, era a terrível sentença.

Lembro de, perplexo e estupefato diante do inusitado espetáculo da guerrilheira insubmissão artística e das viscerais atração e repulsa, me ter, por minutos, perdido, melhor, abandonado, a devanear sobre o poder mágico da arte de Cardoso, sobre como ela, malgré tout, abria seus caminhos e se construía e se consubstanciava afirmativamente, mesmo lançando mão dos materiais mais vis e mais abjetos. Tornava-se ele assim marco territorial e somava-se a outros tantos pioneiros na luta da libertação das amarras do conservadorismo das políticas e das estéticas putrefatas. Sim, lembro de ter aproximado meu nariz ao vestido de guimbas e cheirado - curiosamente "non olet", não fedia. Ao menos, não mais que o resto dos membros.

Conclusa aquela consciente e sintomática série, Cardoso agora uma vez mais nos surpreende, e agradavelmente, com o seu criativo e inventivo mapa da indústria brasileira - continentes e conteúdos, saquinhos plásticos contendo açúcar, café, farinha, biscoitos etc., que, recortados e costurados na forma de almofadinhas, desenham e escrevem uma geometria altamente pictórica e imbuída de poesia concreta, já que os rótulos das marcas e seus sedutores dizeres, ostensiva e criteriosamente dispostos, nos remetem a valores de explosiva carga social e psicológica, tais como união, amoroso, pureza e por aí. São quadros de grandes dimensões que permitem leituras simbólicas catalisadas pelas figuras que representam - o tubarão mal disfarçado de golfinho, o porco, a bandeira da ordem (vigente) do progresso (oligarquizado), a bola (a tábua de salvação).

Sim, não restam muitas dúvidas quanto ao substrato de fina e mordaz ironia e da contundente crítica que a arte de Cardoso em nos evoca, insufla e inflama. Afinal, o histórico dele é a sua mais patente e candente testemunha - desprovido que esteve dos mais elementares frutos e benesses do propalado progresso. Não é segredo que, de pequeno, na gráfica Paraty, antes de, por incentivo dos cineastas Barreto, se tornar o inquieto e engenhoso artista que é, a duras penas ele sobreviveu da pintura de barcos pesqueiros, do conserto de redes de pesca e do preparo de armadilhas para peixes. Malhado e moldado com essas ferramentas, ele certamente não se deixaria enredar pelas armadilhas do fácil ufanismo ilusório e, mais, ludibriante e enganoso.

Assim, não é de se supor que Cardoso desconheça a mais nua e crua realidade dos cânones e das leis que regem e dominam a tal indústria brasileira que em sua maior parte - a do leão! - é constituída por multinacionais sugadoras de indecentes royalties, aberta e ocultamente remetidos às suas matrizes interessadas na apátrida mais-valia, não no suor e nos sofrimento dos povos. E o que sobra às multidões que de fato produzem e constroem as riquezas brasileiras? As migalhas e, claro, a bola, um cacho de bolas, feitas desses mesmos materiais sintéticos, coloridos e letrados, que Cardoso pendurou na parede da Galeria Niemeyer - um policromático estandarte tridimensional de soberania, ao menos essa!

Seria preciso que houvesse mais artistas dotados com os mesmos quilates do talento, da criatividade e da consciência crítica de Cardoso para que o Brasil finalmente, e não sem tempo, se libertasse do paradigma arcaizante e escravocrata e configurasse o tão sonhado berço esplêndido capaz de, qual mãe gentil, acalantar e acalentar seus cidadãos mais humildes e exclusos - os exaustos!, para que também eles pudessem se integrar e se orgulhar da genuína indústria brasileira - a artística, não a da fome. Feita com delicadeza e inteligência ao modo do sensível Cardoso!

©Alexandros Papadopoulos Evremidis > escritor crítico > Email


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