"A Caixa Rendada", de Gilvan Nunes.

"O rolo compressor do Gilvan" ou "A caixa rendada nas mãos de uma pessoa muito prendada!"

©Alexandros Papadopoulos Evremidis*


Razão tinha João Carlos, armador dos chassis do Gilvan, que, quando perguntei pelo artista, fez caras e bocas e disse tratar-se de um garotão muito louco. Louco, além de eufemismo, é pouco. Eu diria "louco varrido". Sim porque pra fazer o que fez, só mesmo sendo doidim doidim, lelé da cuca e silva, coisa de menino maluquinho.

Você ficou curioso para saber o que foi, afinal, que o rapaz fez? Bem, melhor ficar curioso do que furioso que nem o outro que, perguntado se tinha gostado do visto, "Entrei e saí", disse seco, cortante e desprezante (sic) e bebericou mais vodca. "Perdi meu tempo vindo ver esse lixo", desanimou a outra, conformada, e continuou abastecendo a pança. Pensei em argumentar, mas desanimei também e calei. Ia falar o quê, defender o cara e/ou a arte? Nonsense. E por acaso eles precisam disso? Necas. De mais a mais, aquele não era o lugar nem aquela, a hora. Era noite de festa e de confraternização com o malu beleza Gilvan Nunes que ... o que foi mesmo que ele fez?

: ele simplesmente
a) correu e garimpou esses sebos que vendem de um tudo (e que eufemisticamente são denominados Lojas de Antigüidades - lá tudo ou é Luís XIV, le roi soleil, ou é Luís XV, le bien aimé) - lixos e descartes de uns a peças realmente raras e preciosas de outros, mas que, de alguma forma, fazem a alegria dos "terceiros", inclusive do dito cujo que
b) comprou (podia ter recolhido de graça nos montes de lixo na rua) alguns desses quadros ditos populares, naives, anônimos (o q soa como estupidez pq não existem artistas anônimos, o que há são artistas que não tiveram a sorte ou o azar de serem badalados, embora todo homem tenha um badalo entre as pernas e dele convêm fazer uso de uma forma ou de outra, de preferência de ambas e várias) e que vêm empoeirados, enfumaçados e engordurados;
c) de volta ao atelier, contemplou-os demorada e enamoradamente, viajou, foi, voltou, tornou a ir e em transe limpou-os amorosamente, acariciando-os numa abordagem física, sensual e erótica, corpo-a-corpo;
d) na seqüência, e excitado à flor da pele, subitamente teve uma idéia luminosa e em frenesi passou seu rolo compressor sobre eles, quero dizer, o rolo do pintor de parede, estampado com motivos florais do tipo me-ama-não-me-ama; como a última folhinha dissesse ser ele amado, ele correu de novo, na verdade, voou e,
e) na ânsia de compartilhar seus prazeres com o mundo, cavou os subterrâneos do templo de arte Belas Artes onde pendurou-os nas paredes que os aceitaram com estranhamento e lamúrias, reclamando tratar-se de corpos estanhos, sem sintonia fina. Ah, é? Gilvan que já tinha vindo armado com suas ferramentas, não pensou duas vezes e, passando o rolo também nelas, margaridou-as de cabo a rabo, coisa que elas adoraram sentir tanto que relaxaram e se aquietaram. Agora sim o ambiente, tendo sofrido esse feng-sui catártico total, estava comme il faut - enfeitado e harmonizado, pronto para o tão esperado e desejado himeneu do passado com a modernidade. Valeu, corta(-lhe a aorta)!

Você chega ao Belas Artes, sobe uma escada, atravessa dois extensos corredores vigiados por meia dúzia de autoritários e incivilizados tontonmacutes tardios (aí, Herk, isso aí nem parece casa de arte nas mãos de um artista ... serão resquícios de alguma jararaca que por ali se arrastou?), desce outra escada e dá de cara ... com o portão (fechado) da lateral do prédio a dois metros da galeria do Gilvan. Não seria mais apropriado liberar esse portão, questiono uma funcionária. Ela levanta os ombros e os olhos - coisa dos malucos "lá de cima". Vai ver que lá em cima a arte não combina com a simplicidade da felicidade. A reta entre dois pontos não convêm, é preciso, carregado do madeiro (ou da lata d'água), subir e descer o morro e percorrer os meandros do roteiro da paixão para se chegar à arte e à manha de Gilvan.

Aí você desce mais uns degraus e está no interior da galeria que mais parece um bunker já que não há janelas, luz, ventilação. Até aí, tudo bem. Se o confinamento de Nicholson nesse espaço, há dois anos, foi inadequado, no caso de Gilvan parece sob medida - não por razões de merecimento artístico, longe disso!, mas por motivos das dimensões e da presença física das obras de um e de outro. Os do primeiro exigem territórios amplos e generosos, celestiais; os do segundo se assentam mais intimisticamente nos murmúrios e meios tons de um ambiente reservado.

Ah, deixa pra lá, o que interessa é que, uma vez lá, a sensação que se apoderou de mim, foi a de ter sido abduzido de um mundo maçante e prosáico e teletransportado para outro, encantador e mágico, absolutamente onírico. Se lá fora tudo era asfaltado, chique, luminoso, ordeiro, bem-nutrido, moralista e hipócrita, ali reinava "la media luz", o cabaré decadente, o quartinho de um bordel de beira-de-estrada ou o de uma donzela no barracão de zinco, o sonho, a nostalgia. Faltou uma vitrola, o amor e sua ausência, a traição e a fidelidade cantados e chorados e sentidos e ressentidos na mesma medida e com a mesma emoção. Uma humanidade delicada e amorosa exalava verdades e ilusões, odores entorpecedores. A feira, a quermesse, o bazar. Cercado por aquelas milhares de margaridas brancas que, contrastando com o fundo mais ou menos escuro, ganhavam materialidade viva e até acenavam para mim, como se me convidando para também despetalá-las a fim de saber dos amores inviáveis, me senti em alfa, beta, gama. E gamei! Uma realidade paralela se instalou por intermédio da instalação de Gilvan e me emocionou. Por instantes, senti como se eu solto estivesse no azulado espaço sideral e aquelas margaridinhas do Gilvan fossem estrelas brilhantes e os quadros, visões epifânicas a flutuarem no etéreo. Uma viagem absolutamente lisérgica!

Apercebendo-me dos quadros, na forma de testemunhas e acidentes geográficos de um tempo, nas paredes, aproximei-me deles e observei atentamente as telas, agora revestidas por aquele pretenso papel de parede ... não não, agora já não parece mais papel, é um diáfano e sublime véu de noiva, que, ao mesmo tempo que esconde, revela; mais, agora também destaca os pontos nevrálgicos, põe em evidência, eleva e presta homenagem! As pinturas "originais", além, aquém e acima de toda e qualquer apreciação crítica canônica, que no caso as profanaria e conspurcaria, estupraria mesmo, são de uma poética irrepreensível e apelam diretamente para a nossa emoção e para os nossos sentidos. Há um belíssimo e sensualíssimo nu de uma mulher recatada ou pudica [feita por artista sensível a ângulos e a volumes, (ah, como queria ter sido eu!), tal a perfeição, a santidade e a lascívia concomitante] e a um tempo desestabilizadora e radioativa, que posa numa ligeira diagonal, com o torso a 3/4, que é a mais pura expressão do feminino das nossas adolescências, eterno por atemporal, de causar inveja a qualquer autêntico mestre que nem o mestre deste quadro. Não deixam por menos as paisagens, as marinhas, os barcos, as figuras dos pescadores, os casebres de sapé, as choupanas, uma árvore de folhas afogueadas, pré-outonais, a distribuição do pão e do vinho, que a toda hora, mais do que o ágape da fraternidade, nos quer lembrar que ainda e sempre há, entre nós, um santo e um filho da puta, como se qualquer um de nós, em algum momento da vida, e sob certas circunstâncias, não fosse capaz de uma coisa ou de outra.

Cadê o artista? Ele não veio, João Carlos, o armador, ri achando graça. E ele nem precisava vir porque ele ali já estava e com tudo que era ele e dele - na "pessoa" de sua instalação! Mas daí a pouco ele vem em carne mesmo e, tal qual um furacão, fala, gesticula, anda com se estivesse desenhando com os pés e o corpo inteiro - escreve arcos e raios, tracejados e hachurados, polígonos, poliedros, pirâmides e cones, ícones! Só de sacanagem, pergunto se ele pintou as margaridas das paredes com o pincel, uma a uma. Ele me olha desconfiado e mata - passei o rolo! E as pinturas? Passei o rolo! Dou-lhe os parabéns e ele agora completamente incrêdulo e humilde, quer saber: Você gostou MESMO??? Gostei, e muito, da idéia, absolutamente contemporânea, seja lá o que for que isso signifique. Afinal, e tudo somado e subtraído, ele não havia melhorado nem piorado o trabalho dos outros trabalhadares/artistas. Ele apenas, salvou-os do abandono e da miséria e continuou a artística construção criando em cima, que é como se conquista o conhecimento - tijolo em cima de outro tijolo posto ali por outro maçon. Livre pensador.

Rio de janeiro 2003.

Alexandros Papadopoulos Evremidis = > escritor crítico > Email


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