Eduardo Sued – A Experiência da Pintura
A quarta dimensão

©Alexandros Papadopoulos Evremidis*

De pequeno, lá nas proximidades do Olimpo, eu freqüentava os escoteiros. Aprendíamos a amar e a respeitar a natureza, a desvendar-lhe os segredos e escapar-lhe das armadilhas. E o mais tortuoso e difícil - praticar uma boa ação todo dia. Culpa certa e quase diária.

Recorro a esse pormenor da memória afetiva, para dizer como me senti, certo dia, no CCBB, após passar alguns minutos na companhia do próprio Eduardo Sued e das pinturas dele. Sabe aquele etat d'esprit, de quando você sai de um lugar com a sensação de que não perdeu seu tempo? Que, pelo contrário, ganhou o dia, a noite e a soma - a eternidade? Eu acabara de realizar a boa ação do dia, com o diferencial egótico, porém, de que ela havia revertido em causa própria. Ainda assim me senti iluminado - eu havia experienciado o transcendental.

E foi em função disso que re/titulei a exposição de Sued, de "A experiência da pintura" para "A quarta dimensão" da mesma. Se a intenção dele era emitir a experiência da pintura, eu estava ali vivenciando a plena experiência da recepção dela, sua quarta dimensão. Mas o que é isso? Existe? E, se afirmativo, é misticismo? Negativo. Nada de religião, de astros, de tarô, do diabo a quatro. A saída sinalizava para a sintonia do canal, da captura do sinal, da aceitação do tom da corda cardíaca - que é para onde apela e onde certeira tange e, benfazeja, fere. Senão, pergunto, por que cargas alguém pintaria o negro e o cinza se nem cores são, se tudo há de virar pó (ad locum tuum ...) envolto na encouraçada armadura do escuro? Se o homem é a medida de todas as coisas, e Sued muito bem sabe disso, então ele, atento e acorde, soube ser humano em sua mais cabal significação. Poética: a quarta dimensão é a conspiração das outras três.

Está na hora, vamos à exposição.
O primeiro quadro que me aprisionou, foi, lógico, ele, todo negro e todo monumental e hierático. E não parecia ter sido pintado com tinta, mas com piche, admiravelmente empastado e em plena convulsão e efervescência, como que revelando as entranhas da geração. Um homem que assim pinta, pensei, tem muito que nos orientar.

Logo a seguir, o que me assaltou foi a visão do tosco madeirame que, formatado como calhas e quilhas, diques e muros de contenção, e aqui e ali ladeando as pinturas, em mim evocou a imagem de alguém revoluto arrancando o que um dia fora moldura, agora um poderoso agregado, palpável e texturizado, volumoso, escultural. Ou, sintomaticamente, originário de tantas outras demolições e desconstruções. Ou, ainda, como coisa do feliz acaso - imagine você descansando uma grande tela fresca sobre um toco de madeira. A tinta escorre para o apoio, gruda, seca, se amalgama e na hora de mover o quadro, você acha a reunião "ben trovata" e "let it be", deixa rolar. Um grande estranhamento e uma irrequieta inquietação.

Repito: eu era pequeno e o que mais carcomia minha curiosidade era descobrir o que de secreto e precioso havia debaixo das saias das mulheres, que, ao soprar do vento, apressadamente as agarravam impedindo assim a suprema revelação. Depois, só muito e irrecuperavelmente depois... Ali, agora, diante daqueles Vs invertidos dos madeiros da base de algumas telas, a mesma tortura. O que havia em seu interior? Disfarcei: me afastei, fiquei no foco, me aproximei, toquei a (intocável - nada é intocável) tela, acariciei-a, quase enfiei o nariz nela, cheirei, quase lambi (mas, ali, em público?!), auscultei, desviei para as diagonais, olhei as laterais e subitamente não resisti - me abaixei e me contorcendo todo tentei espiar o que havia em suas internas. Sei eu lá, podiam ser códigos secretos, mazuzotes morais, semas apócrifos, mulheres nuas, exorcismos, mensagens ocultas. Enigmas esfíngicos.

Nada, entretanto, não era nada disso - o cioso artista, não privilegiando apenas as aparências, havia pintado também os esconderijos, as fissuras, as frestas e as cavernas, as feridas da carne e os recônditos da mente, os interstícios dos neurônios - para maiores, melhores e mais eficazes sinapses. Foi quando com o canto do olho, o que cuidava da minha segurança, captei uma agitação num grupo próximo de pessoas. Uma delas havia se desgarrado e, toda luz e sorriso, ou era ironia?, vinha em minha direção - era o próprio Sued, com aquele seu jeito aparente de santo e Bozo. Sentido-me apanhado em flagrante delito e culpado e confuso, como não pretendesse me desculpar e tampouco dividir aquele momento sublime, nem mesmo com ele, imobilizei-o com meu olhar e o demovi do propósito. Não tivera ele o dele? Que me deixasse curtir o meu. De mais a mais, eu não me sentia pronto para o... confronto.

E fui, assim, peregrinando de quadro em quadro, pelos vermelhos, pelos verdes, pelos azuis, pelos delicada e harmoniosamente cromocompostos e me abastecendo de plenitude e da sensação de estar fazendo um passeio pela história da arte moderna, pela escolas, pelas correntes, pelas vertentes, pelas apropriações devidas e apropriadas e também pelas indébitas. Havia lá telas pequenas, sintéticas e emblemáticas, que pareciam pintadas com rolo e exalavam quietude e placidez, e outras maiores, heróicas, que ostentavam a turbulência tempestuosa dos interiores mares revoltos, o tumulto das almas perturbadas pelo mistério. Imaginei Sued, febril e agitado, volteando com o pincel e a brocha pelas dramáticas superfícies e não fazendo a menor questão de lhes disfarçar os toscos rastros e as passadas, ao contário, delas se servindo como porta-voz. Cheguei a visioná-lo com aquele instrumental, como se batuta de maestro, comandando os mais sutis e os mais abruptos movimentos, orquestrando as grandes sinfônicas do cosmos - sim, é assim a pintura dele - cósmica. E nesse muito particular sentido que aqui quero atribuir ao vocábulo, a criação dele não resulta em pinturas - produz entidades autônomas, livres e independentes, vivas e vivazes, com soma e pneuma próprios e inalienáveis.

Procurei então por Sued e, aí sim, com tudo em cima, me dispus a compartilhar e comungar o segredo. De fato, após cercá-lo e pegá-lo de jeito, perguntei de chofre (antecipando ao ouvido do colega que me acompanhava a resposta que o artista daria e que não deu outra):
- O que mantém o homem vivo, Sued?
- O trabalho!

Mãos à obra, então! Quem dera este país aprendesse com Sued a se constituir e a se construir?!

Rio de Janeiro 2004

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