"(Des)Escadas", Cildo Meireles
Escada para subir ao inferno e escada para descer ao paraíso?

©Alexandros Papadopoulos Evremidis*


Parêntesis: Estive na Galeria H.A.P, pela primeira e única vez, há uns dois anos, e lembro ter escrito algo sobre as nebulosas pinturas de Jaqueline Adam e sobre os doirados alabastros de Maria-Carmen Perlingeiro.

Colchetes: Este é um work in progress que, no caso, é a mesma coisa que trabalho continuado e, mais, sem fim; mas com uma única solução, cuja chave salta aos olhos ...

Chaves: Agora, início de dezembro de 2003, ao saber que Cildo iria participar dessa coletiva de 3, tive que lá voltar. Afinal, Cildo, mais do que um artista, é um conceito, razão porque inevitável ele estar na mira (para ser admirado) de quem quer que seja.

Entre o material dele, exposto na galeria, há estudos sobre a construção de duas monumentais escadas (escalas, para ele, só para não perder a notação das oitavas do tom) - uma para subir ao céu e outra para dele descer (ao inferno? e seria ele então a terra?). Claro, isso grosso modo nos lembra de um personagem mítico que sonhara com uma escada que subia ao céu (exaustivamente e ad nauseam pintado e repintado ao longo dos séculos!), mas que só fala em subir, nada nos diz sobre descer do céu.

Devemos supor então que, se a escada era para subir, para descer a pessoa teria que simplesmente pular lá do alto?! Uma boa anedota, que Cildo quis reformar e complementar, ou suas falhas arquitetônicas funcionais corrigir?

Que fosse, mas ainda assim havia algo intrigante: Por que duas escadas? Não bastava apenas uma, que servisse tanto para subir como para descer, como é comum em prédios e afins? (Pense em elevadores para subir e elevadores para descer)(e em carros e carroças para ir e carros e carroças para voltar)(Que tal um pé para ir e um pé para voltar?). Ou será que a segunda fora pensada como de emergência ou de incêndio, caso a terra e_ou o céu pegassem fogo? Imagine Urano e Gaia debatendo-se e agonizando em ardentes chamas (sem que sejam as da paixão engendrada por Eros, o único invencível nas batalhas, segundo Sófocles).

E ainda havia a solução de pragmatismo imediatista, qual seja, a de pura e simplesmente evitar a formação de congestionamentos de trâfego - pensei e, achando graça, ri com a idéia cumpridora de um dos pétreos requisitos da arte - o de causar estranhamento: pelo inusitado, pelo paradoxo, pelo múltiplo significado das teses - uma polisemia?.

A arte, não é que tem que ter isso, ela tem isso em sua mais íntima natureza e é uma conditio sine qua non. E a prova é que tivesse Cildo falado em apenas uma escada e o assunto teria morrido ali. Eu aventureiramente poderia ainda devanear com a idéia do feijão que aqui nasceu e até a lua cresceu, ou com a infantil ou beata e piegas possibilidade de assim me aproximar de deus e do seu paraíso reservado para as virgens virtuosas e sábias. Mas não, além de não mais ser virgem e muito menos virtuoso, faz já algum tempo que o céu deixou de sinonimar com deus, paraíso ou o quer que seja de místico. Antes, com o comercial, haja visto, desde sempre as religiões o estejam loteando, e com o bélico, levando em consideração os paranóicos escudos anti-mísseis ou guarda-chuvas atômicos.

O caso é que com essa estória das duas escadas de Cildo, eu fui levado a "viajar" - ir ao paraíso e voltar. Como porém sintomaticamente a de subir estava completamente abarrotada de gente, fato humanamente compreensível, e daí humanamente intransitável, dei uma de esperto e subi pela de descer. Encontrei um ou outro pobre diabo pelo caminho, o nu descendo l'escalier, de Duchamp, por exemplo, e aproveitei para perguntar a razão do amargo regresso. Que nada! Lá, no paraíso, disse (diseram) ela (elas) , toda (todas) cândida (cândidas), era tudo muito tedioso - não havia nem sexo, nem drogas, nem rock'n'roll; só o solado pilafe maometano e o chato cântico dos cânticos. Ao chegar lá, de fato, tive essa mesma impressão de impiedosa impiedade. Tanto que me apressei em logo regredir também.

Devo deixar registrado que, apesar do pouco trânsito da segunda escada, a travessia foi ainda assim muito penosa. Que idéia mais estapafúrdia e prosaica essa daquele cara de sonhar com uma escada subindo. Mais poético foi Dêdalo que improvisou duas asas. Está certo que o Ícaro dançou nessa, mas também quem garante que a escada não vai escorregar ou que um distraído não vai pisar em falso e despencar? E mais generoso foi Cildo com sua ambígua duplicidade. Além, também, de mais higiênico, já que os degraus da de subida certamente estão completamente contaminados por pecados e micróbios contagiosos; já os da descida, como as pessoas voltam limpas e purificadas, não apresentam risco algum. Não é na sábia Índia que os párias varrem o chão, por onde os patrões vão passar, andando de ré, para não terem que pisar e re/infectar com a sua imunda existência a área já limpa?

Eu já estava indo embora da arquitetônica galeria, quando, na soleira da porta, topei com Cildo e não me contive - quis saber se a idéia era mesmo essa a de criar um paradoxo, mas com plena razão e funcionalidade, a de evitar engarrafamentos. Ele pareceu pego de surpresa e, intrigado, riu, não sei se de nervoso, pela imprtinência de eu estar perguntando o óbvio, ou por achar as perguntas ingênuas e anti-artísticas. Ainda assim murmurou que era isso mesmo, sim, um paradoxo, e que a idéia dos engarrafamentos também fazia sentido. Mas aí ele já estava brincando e, mais, zoando.

Nós, porém, que também gostamos de uma boa brincadeira, vamos ficar em cima, e não será do muro (de Berlin, que não mais existe fisicamente, embora lá continue virtualmente, nem no da Terra Dividida, que os sábios de Sion estão a edificar, edificante exemplo fornecendo ao mundo - que tal um muro separando o norte do sul, como uma espécie de cinturão de segurança? E que tal, por meio de explosões atômicas pontuais, cortar mesmo a terra fisicamente ao meio, no sentido equatorial, criando assim dois novos (?) planetas, denominando um de Campos Elíseos e o outro de Tártaro Tarado?).

Voltando ao muro (não o das ridículas e incoerentes e, pior, hipócritas lamentações, de causar inveja a qualquer crocô decente), talvez essa não seja uma idéia má de todo - afinal quem está em cima do muro tem, qual Janus, visão privilegiada, pode observar e/ou apreciar os dois lados, o passado e o futuro, a casa da gente e a do vizinho (sempre mais e melhor, sem falar da facilidade de "roubar" as frutas das árvores fronteiriças, sempre mais gostosas). E a filha agachada e acocorada fazendo o quê?

Cildo, tenho uma sugestão cibernética: por o céu ser infinito, emendando as duas escadas, economizaremos uma. E considerando a terra como marco e nível zero, a metade superior servirá a quem quiser descer ao céu e a metade inferior, a quem desejar subir ao inferno. Será um encontro e tanto e com a mais-valia de, nesse "anstossen", esmagarmos deus de uma vez e para sempre. Há apenas um único inconveniente: como no espaço, desde Lao Tse, não mais existe essa de micro e mega, curto e comprido, ana e cata, "cima" e "baixo", para contornar o impasse, podemos também posicionar a escada 2 em 1 na horizontal: para a direita "subirão" os bons e os limpos de coração, os beatos e os moralistas; para a esquerda "descerão" os maus e os impuros, os ateus e os pedófilos, os comedores de criancinhas, os comunistas, por exemplo. Mas ... para a direita e para a esquerda do ponto de vista de quem? De quem está do lado de cá ou do lado de lá da escada? Ah, deixa pra lá ...

... e vem cá: uma esteira rolante, dessas industriais, que levasse radial, para e hiperbolicamente para pelo menos tantas direções quantas a rosa-dos-ventos possui, não seria mais prática e mais democrática (isso, sem falar em teletransportes ou desarranjos aqui e re/arranjos lá das moléculas dos ditos cujos)?

{Agora é com você [é, pf, não me olhe assim, é você mesmo!]}:

Rio de Janeiro 2003

Alexandros Papadopoulos Evremidis = > escritor crítico > Email


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