| Bruno Vieira |
O Infinito Agora

“Agir contra o passado, e assim sobre o presente, em favor (eu espero) de um porvir – mas o porvir não é um futuro da história, mesmo utópico, é o infinito Agora, o Num que Platão já distinguia de todo presente, o intensivo e o intempestivo, não um instante, mas um devir.” GILLES DELEUZE, O que é a filosofia?

“Agora mesmo (que palavra, agora, que mentira estúpida).” JÚLIO CORTÁZAR, As babas do diabo

Eis que enfim diz a Pintura, após ter pintado o mundo criado por seu pai, o deus dos deuses:

“– As Divindades das águas, consideram minhas pinturas com prazer, e assim quiseram me copiar. [...]. Os grandes Rios e as Torrentes, mesmo velozes e impetuosos, tratam constantemente de imitá-las, mas eles não têm paciência suficiente para concluir o que começam. Apenas as Ninfas dos riachos, dos lagos e das fontes, cujo humor é mais doce e mais tranqüilo, conseguem. Se aprazem tanto dessa ocupação, que não fazem outra coisa que representar continuamente tudo o que, a elas, se oferece. Mas são tão caprichosas, que não é possível ver direito os quadros, pois sempre os representam ao avesso... os Zéfiros se divertem com freqüência a corromper os traços e a confundir as cores de seus quadros.”

O Amor, então, acrescenta:

“– Eu quis que fizessem meu retrato: várias Ninfas de fontes e lagos os mais tranqüilos testemunharam-no com prazer. Mas quando elas finalizaram meu quadro, não pude tirá-lo de suas mãos; e, assim que eu me afastei, elas apagaram o que haviam feito, para colocar outra coisa no lugar.”

Foi esta pequena fábula da origem da pintura, narrada por Félibien, que me assaltou a lembrança quando assisti pela primeira vez, no vídeo de Bruno Vieira, à dança caprichosa das vagas aproximando e recuando corações de gelo, dissolvendo-os com sua tepidez, para serem tragados sem pressa pelo mar. Como escapar à implacável consumação?
Quantas vezes as águas e seus espelhos iriam alimentar as alegorias de origem da arte. Mas seria preciso, como diz Louis Marin, que o Amor finalmente congelasse Narciso para suprir a deficiência própria das águas, cuja superfície é perfeita, mas efêmera e fugaz. Uma deficiência que é da ordem do tempo. No mito de Narciso apaixonado pela própria imagem, Alberti viu o inventor da pintura. Com Narciso imobilizado à margem da fonte, a Pintura fixará, no redobramento mimético, o que a Natureza não foi capaz: “a presente presença de uma representação, a presente presença de um ausente ou de um morto, a coisa no instante de sua aparição”. Ainda que estejamos falando do universo clássico de uma dobra mimética, de uma representação, o que está ali desde as mais antigas especulações sobre a arte, senão a angústia do jamais idêntico que o devir do tempo arrasta? Como aceitar a incessante metamorfose que nos consome a cada instante? Como aceitar as diversas mortes neste esquecimento infinito?
O tempo, com sua fluidez e fugacidade, seria excluído do universo das artes visuais por uma tradição que defendia a especificidade de cada categoria artística, seu reconhecimento nos limites do que lhe era exclusivo. Consideradas artes do espaço, o tempo é comprimido no instante fecundo de Lessing (o momento da ação, representado na pintura, capaz de abarcar implicitamente o passado e o futuro), ou no imediato de Greenberg ou Fried (a suspensão do tempo experimentada pelo espectador no instante do encontro extasiado com a obra de arte). É um tempo sem duração, um instante ou um imediato que viola o próprio tempo. A dificuldade de se viver na eterna diferença obrigou a metafísica a recuar e reverter o caráter inelutável do que acontece agora, como dirá Clement Rosset, para um outro plano que lhe desse sentido: um outro que, fora do tempo, assimilasse todos os momentos e os relacionasse a um passado e a um futuro. Um outro que se chamaria origem, finalidade, eternidade... Do círculo do tempo arcaico ao fio que se desenrola no tempo da História, da reminiscência platônica aos a-prioris da sensibilidade de
Kant, o tempo teria imagens, modelos do qual a experiência pudesse se derivar e se decodificar. Mas os corações ali são de água, a suspensão de sua fluidez no congelamento é passageira, sua paralisia transitória. Uma mobilidade que a imagem do vídeo, sua virtualidade projetada e confrontada com a materialidade da areia, só faz ecoar. O tempo é o inimigo vigilante e funesto, “o obscuro inimigo que nos corrói o coração”, escrevia Baudelaire (Spleen et Idéal). Se Narciso transformou-se na flor que leva seu nome, o destino dos corações é participar do devir da matéria, entregar-se às suas mudanças, consumar-se na voracidade do tempo como tudo o que vive e ama. Água-viva, intitula-se a videoinstalação. Bruno Vieira é um artista inventivo e curioso. Sua inquietação o vem conduzindo, nestes poucos anos de atuação artística, a explorar diversas mídias, a aventurar-se em muitas direções. Seus trabalhos, que incluem desenho, pintura, escultura, vídeo, fotografia, instalações, ações em rede e intervenções urbanas, quase sempre operam na interpenetração dos meios, por vezes explorando os sistemas e as redes, mas sempre estabelecendo um fecundo diálogo com a história da arte. Esta exposição, em que predominam fotografias e vídeos, é atravessada por três inquietações de fundo: o colapso do tempo, a poética dos elementos, o sentido de verticalidade.
Como responder ao colapso na experiência do tempo que perde espessura, imagens e medidas? Como habitar esse tempo sem fundamentos e modelos? Ora, em muitas tradições antigas, como a grega, o círculo é simbolicamente o tempo. O movimento circular é perfeito, imutável, sem começo ou fim: uma sucessão contínua e invariável de instantes idênticos. Não flui, não se altera nem se esgota, é um tempo ontológico por excelência. É o tempo em que retorna a origem do mundo, a memória do tempo prodigioso do princípio: um tempo cosmogônico, arquétipo exemplar de toda criação humana. E, se o tempo mítico é reversível e hierarquizado, o tempo histórico manifesta-se em uma única direção. Era necessário dar uma forma e sentido às seqüências dos momentos e dos acontecimentos, neutralizar o inusitado da ocorrência, relacioná-los na continuidade das causas e a uma destinação comum. Se o mito fundamenta sua verdade em uma origem, a História a legitima em um futuro. Todavia não vivemos mais no tempo linear da História, que se desenrola em relações de causalidade e finalidade, impondo suas determinações e fundamento aos outros saberes e à vida em geral. A História não mais explica e justifica nossa existência. “O mundo não se experimenta mais como uma grande via se desenvolvendo através do tempo”, como disse Foucault, mas como uma “rede que religa pontos e entrecruza sua trama.” Estamos na época do “simultâneo, da justaposição, do disperso”. A esse tempo indomável, em intensa deriva, aberto a direções ilimitadas e imprevistas, a saltos e vertigens, Deleuze deu a imagem de um “rizoma”.
Eis o paradoxo em que vivemos: se esse tempo labiríntico e expansivo nos anuncia a convivência de temporalidades diversas, também coexiste com o tempo comprimido e esvaziado na circulação vertiginosa e instantânea das imagens e das informações pelas redes eletrônicas. O agora deixa de ser o momento de transição entre um passado e um futuro que lhe dá sentido, para ser o intervalo dilatado e digressivo da experiência ou o instante sincrônico e eternamente presente das mídias. De que modo esse tempo em colapso modifica nossa percepção da memória, nossa relação com o passado, nossa noção de futuro, nossa vivência do agora e do instante, nossa experiência estética? Como abrir mundos e tempos na cosmogonia incessante da arte senão lançando-se na coreografia poética dos elementos? Parece interrogar-se o artista. E quem sabe, aprender com eles, os segredos da gênese, do devir e da metamorfose, da alteridade e da desaparição.

A poética dos elementos

“Vi, como o grego, as cidades dos homens, / Os trabalhos, os dias de vária luz, a fome;/ Não corrijo os fatos, não falseio os nomes, / Mas le voyage que narro, é... autour de ma chambre.” JORGE LUIS BORGES, O aleph

Bruno Vieira constrói cidades insólitas e desabitadas, cidades erigidas com os elementos: torres ou colunas de água, fogo, terra e ar. Lugares que não chegam a ser lugares, mundos que anseiam por ser mundos e que parecem oscilar entre a promessa de vir-a-ser e sua inexorável ruína. Um aniquilamento que se pretende suspenso na fotografia, como nas Cidades de areia e de gelo, ou repetido ad infinitum nas imagens do vídeo, como na Cidade em chamas. Suspensão ou repetição do mesmo fazem parte da mesma fantasia: explicitam a vã tentativa de uma domesticação do tempo, de abrandar sua insaciável ferocidade.
Signo de evolução e transcendência, construção e progresso, a iconografia ascensional penetra o imaginário de várias culturas e religiões. Mais do que efetuar simbolicamente a passagem entre terra e céu, entre a densa matéria que nos aprisiona ao solo e a invisibilidade que a ultrapassa, as imagens da verticalidade aludem a um acontecimento: o homem. Este pretensioso animal bípede, que se pôs na vertical para subjugar tempo, espaço e acontecimento à sua medida, razão e vontade, mas que vive entre suas quedas do paraíso. A vertical é a metáfora do Homem (ou da Humanidade construída em seus delírios metafísicos e históricos) que produz a si mesmo como obra, mas cuja enunciação segue problemática, impossível e derrisória.
Não por acaso, a figura humana está nesta mostra ausente ou, se existe, é indicial: exibe-se como o vestígio de uma presença que só pode ser fantasmática. É o rastro que se faz superfície nas fotografias da série Invasões, em que os contornos da sombra de um homem, desenhados sobre a areia, se desencontram de sua projeção (afinal, sol e terra seguem distraídos os rumos de seu curso e rotação, indiferentes às nossas pequenas misérias). São as pegadas de fogo que descem a escada helicoidal do espaço expositivo no vídeo Caminhando. São as mãos que fazem retornar, página por página, no reverso do tempo linear, no ritmo entoado pelo volver das folhas, o livro que guarda as imagens da história da arte no vídeo Vira.
Gestos no lugar do corpo, espectros no lugar da figura. Horizontalidade, descensão, retorno: eis os movimentos que os três trabalhos insinuam, como se fosse necessário desfazer a Humanidade como obra. Como se fosse preciso abdicar da construção de sua abstrata unidade de semelhantes, renunciar ao homem como figura do Mesmo, para aí então encontrar sua humanidade. O homem é uma efígie arredia, imagem e dessemelhança no abandono dos reflexos. Talvez coincida com sua finitude e transitoriedade, com o pó ao qual voltará, com a areia que escapa da ampulheta, circunscrita em vão pelas demarcações do animal bípede. Ou talvez apenas isso: sua passagem, em passos de fogo, na espiral descendente do tempo – o homem é sua história sempre atualizada, sua dessemelhança sem-fim no fluxo irrevogável dos momentos, investindo seu corpo no próprio corpo do devir.
Torres e colunas estão presentes em quase todos os trabalhos em exposição. Das colunas do edifício Gustavo Capanema, símbolo do modernismo arquitetônico brasileiro, nas fotografias da série Invasões, às colunas da cúpula do edifício do Instituo Cultural Banco Real, no vídeo Ar.
Em Invasões, o artista fotografa o deslocamento da sombra das colunas: vemos ali o desencontro do desenho humano com a projeção da luz do astro, a divergência entre a idealidade da concepção e a contingência da experiência. Escrita da luz, a fotografia é, segundo Charles Peirce, um signo indicial, como são as sombras e as pegadas. Índice sobre índice, escrita sobre escrita, luz sobre luz, limite sobre limite. Como observa Maria do Carmo Nino sobre a série do artista, “a sombra é um índice que funciona como o duplo agente do traçado fotográfico. Fotografias de sombras projetadas fazem eco ao tema do duplo. [...] Ou seja, a duplicação não é somente registrada, mas recriada.” Bruno dobra, nessa série, a fotografia sobre si mesma. Ao fazê-lo, interroga os limites da própria fotografia em um jogo de rebatimentos interiorizados, indaga seu poder de repetição. Movimento paradoxal e instigante que, ao interiorizar as ressonâncias, abre o tempo da imagem como repetição e diferença, como deslocamento e desvio.
Em Ar, por sua vez, a passagem é abordada por outro viés. Bolhas de ar flutuam em slow motion entre as colunas da cúpula, estabelecendo um contraste entre a imobilidade das colunas – e seu sentido de eternidade – e o movimento fugidio de bolhas e nuvens. Se na série Invasões o movimento é insinuado no cotejo de fotografias de instantes próximos, em Ar, o retard da imagem em movimento do vídeo o situa no limite da fotografia.
Ao explorar as passagens e interseções entre as artes e suas imagens, Bruno Vieira nos instala nessa zona ambígua e hesitante entre as imagens que Raymond Bellour chamou de “dupla hélice”. É “entre as imagens”, afirma, “que se efetuam, cada vez mais, as passagens, as contaminações de seres e de regimes”. Passagem cuja tavolleta de Brunelleschi nos fornece, segundo Bellour, uma curiosa prefiguração. A nuvem é um signo indicial que mostra mais do que demonstra, como disse Damisch. Por escapar pela fluidez de sua matéria da racionalização da perspectiva, a nuvem cumpriria um papel ambíguo no Renascimento: a um só tempo mascarava o infinito irrepresentável e o designava. A tavolleta de Brunelleschi nos demonstra: uma catedral em perspectiva está pintada sobre a tela, mas em seu céu, coberto com uma superfície de prata polida, refletem-se as nuvens naturais em seu movimento. Como dirá Bellour, a conclusão simples de que “se o céu permanece imóvel, é antes a pintura ou a fotografia que a situação exige; se as nuvens passam, é o cinema ou o vídeo”, nos força a refletir sobre a analogia do mundo suportada pela imagem, sua potência de semelhança e representação. Formada por planos heterogêneos, a tavolleta nos mostra “um entremeio bastante contemporâneo”.
Explorar a passagem entre imagens, como faz Bruno Vieira, é liberá-las da função representativa que apenas espelha o mundo, para pensá-las como alteridade. A passagem entre elas é o interstício em que afloram suas metamorfoses e reconfigurações, as falhas do tempo mítico, histórico ou antropológico, as temporalidades inusitadas. O paradoxo do vídeo, conclui Bellour, “tem sido apanhar a analogia numa tenaz: por um lado ela multiplica sua potência, por outro ela a arruína. O vídeo estende diretamente a analogia do movimento ao tempo: tempo real, instantâneo, que duplica e ultrapassa o tempo do cinema e do qual as câmeras de vigilância oferecem a imagem atroz e pura”.

O instante se des-loca

“O vídeo não é uma forma de ser da realidade, é mil maneiras das imagens estarem em outro lugar.(...) No vídeo, a realidade nunca comparece ao encontro, porque não é por ela que esperamos.”

JEAN-PAUL FARGIER, Poeira nos olhos

Um lampião em movimentos circulares sobre a superfície das águas. Não vemos quem o comanda, apenas ouvimos o som das marés na noite. O fogo faz desenhos na escuridão, reflete-se sobre o espelho líquido, realiza um estranho ritual de evocação. Quem responderá ao chamado? Quem comparecerá ao encontro? Os deuses, o tempo, a realidade? Evocando deuses é o nome do vídeo projetado sobre a parede. Defronte, na parede oposta, projeta-se Cidade em chamas. Se Evocando deuses parece anunciar começos, Cidade em chamas expõe consumações.
Não interessa ao artista o princípio do real, mas os deslocamentos das imagens, o seu outro lugar. Narciso se convertendo em flor, corações de gelo se metamorfoseando em arte. Afinal, nos labirintos do tempo, todo lugar é um outro lugar. O artista evoca o não-apresentável do tempo, não como uma nostalgia da eternidade ou do absoluto perdidos, mas como uma excentricidade da consciência humana. O tempo tem seu absurdo no indômito do agora, na impossibilidade de se apreender o instante, na contradição de um dêitico como o “agora”: esta “mentira estúpida” como falou Cortázar, que só é capaz de designar o tempo da própria frase, jamais o de uma ocorrência, jamais o de uma aparição.
Ora, é o mistério desse agora, sua captura e remissão que ecoam de diversos modos durante esses dois séculos nas artes. Até mesmo o instante, que pretende suspender o tempo, desloca seus sentidos e ocasiões: está no instante fecundo de Lessing, está no imediato da recepção do juízo estético do Belo em Kant ou Greenberg; no primeiro esboço da percepção empírica do pitoresco; no primeiro jato, aquele momento da inspiração artística dos românticos; na percepção instantânea dos impressionistas; na ficção da fotografia em congelar o instante, em sua captura por um olho mecânico e universal. É a ameaça e o júbilo de viver nesse agora – sem duplo mas infinito – que aí estão em latência.
Bruno Vieira nos aponta quão inúteis e arrogantes são as armadilhas para aprisionar o agora. Evoca-nos a devolver a espessura esvaziada na aceleração vertiginosa das mídias e do mercado, a abrir os horizontes às infinitas paisagens do agora. Um agora que se estende em pulsações e ritmos variados, no eterno retorno das imagens como a eterna diferença do tempo. Um agora que salta aqui e ali ao sabor das circunstâncias, o momento oportuno que os gregos chamaram Cairós. Um agora que, liberto das origens e finalidades, nos expande os vetores da história e as possibilidades do porvir.

“Do lugar onde estou já fui embora.”
MANOEL DE BARROS, Livro sobre nada

Marisa Flórido Cesar

Rio de Janeiro 2008


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