"Escrita à mão - caligrafias", de Arnaldo Antunes.
Arnaldo Antunes - um mito, um monstro, um motor!?

©Alexandros Papadopoulos Evremidis*

escrita_a_mão_1999_2003 Uma-vez-titã-sempre-tribalista-titã, Arnaldo Antunes, um rebelde com causas explícitas - é isso que Antunes nos sugere. Tendo por décadas usado e abusado das palavras, revirando-as de dentro para fora e de ponta-cabeça, esgotando-lhes mesmo os significados aparentes e ocultos, agora ele perscruta-lhes as origens. Propõe uma tabula rasa e um novo sintagma, por construir, e nos remete a sua, e a nossa, infância; mais, à infância dos míticos titãs e, além, dos trogloditas. E nisso, embora ele seja rigorosamente como dele se espera que seja, Antunes nos pega desprevenidos; e assim uma vez mais nos surpreende com a ausência total de previsibilidade e precaução.

Irrequieto e inquiridor, nos arrasta pra os primórdios, para um tempo em que o homem não falava e muito menos escrevia, mas grafitava em busca de algo que algo significasse. Certamente descobriu, e com abundante dor, a infâmia das manipulações que sofrem as letras, o vazio a que têm levado o homem, ao cruel simulacro da liberdade. Guia-nos, então, Antunes, por tortuosos e ainda assim inocentes rabiscos, ao que considera necessário - a re/significação e a re/valorização, a revisão cabal dos conceitos expressos. A liberdade, diz-nos ele, não pertence ao mundo sensível, não pode ser vista, tocada, cheirada, ouvida, revelar seu sabor. Pode entretanto ser comungada, se apropriadamente comunicada por signos exteriores, tais como imagens, desenhos, cores.

As letras dos alfabetos, as palavras e as letras de suas músicas, por mais contestatárias, esbarravam na abstração ordenada das gramáticas e das sintaxes, dos dicionários e dos vocabulários, a que, prisioneiras, se submetiam e obedeciam. Ciente disso, Antunes, por meio de suas obras pictóricas, enseja romper as amarras do silogismo e da lógica aristotélicos, e incoroporá-las ao sentir imaculado, à emoção pura, ao exercício da liberdade. E, se de caligrafias as chama, é porque só agora elas satisfatoriamente atingiram a primeira parte do enunciado, a idéia de "kali", pois grafia já eram. E assim as transladou para o território da kalitecnia.

Se no dizer de Leonardo, os olhos são as janelas da alma e o espelho do mundo, Antunes canalizou o que por meio deles se podia vislumbrar ou espelhar para as mãos. Estas, esboçando o paradigma do aprendizado da sobrevivência no caos e agindo como extensões de seu id mais íntimo, num gestual absolutamente primitivo, apenas movido pela enxurrada do inconsciente, sobre os suportes literalmente derramaram sua psique e seu atributo mais radical - a liberdade, de que falávamos, tal qual os pássaros a detêm quando caligrafam na amplidão e ao sabor dos ventos e das colunas térmicas, harmoniosas e rítmicas.

E para nos falar de coisas simples, abriu mão de uma sofisticada paleta e rebuscado desenho. Calcou seu fazer na espontaneidade dos infantes. Monotipias, monocromias, dicromias, um preto ou branco e vermelho básicos, um preto e um verde inusitados, e por aí - tudo para nos causar estranhamento e surpresa, mas nenhum distanciamento. Pelo contrário, rapidamente nele nos reconhecemos e com ele compactuamos em envolvente cumplicidade.

A prazerosa mais-valia é que suas caligrafias resultam em originais canções, cantadas por suas mãos ao sabor dos inconscientes delírios. Surpreendentes arrepios nos percorrem ao ouvirmos os sussuros que dos seus rabiscos emanam, como se de vulcões pré ou pós-erupção, uma polifonia surda permeada por gritos oriundos de dores que a maturidade traz e só a arte desfaz, razão porque a ela Antunes recorreu. Mas também, como contraponto ao trágico coro, há odes à alegria, à exaltação de Prometeu desacorrentado e ao Sísifo desobrigado. E aqui insofismável é a vocação multimídia de Antunes que qual Orfeu nos seduz e apazigua.

A intermediação da luz, que se espera existir, entre as kalitecnias de Antunes e os nossos olhos, para nossas retinas excitar, foi aqui criativamente, por desnecessária, suprimida. Suas antes precárias e desprotegidas letrinhas agora estão firmemente apoiadas no etéreo, deslocadas para aquém, muito aquém, do suporte material. Atrás, apenas uma camada de intensa, imaculada, virginal e compacta luz, consubstanciada na forma de papel que faz as vezes de um back-light sutil e inconsútil.

Ainda assim, é preciso que fique claro - não é próprio de Antunes querer ferir nossas vistas e nem mesmo nosso senso de estética; ele, na verdade, quer é machucar nossa instável inteligência. Demolidor, ele nos quer reduzir a nossos elementos constitutivos, atómicos, e nos propor o enigma da configuração inicial da Esfinge. Começar de novo? Não, Antunes, sabedor que é da premissa prejudicada, da não existência de novidades sob o sol, não quer facilitar a chegada, mas a abertura da trilha sem volta. Foi para isso que ele, desfocando, invertendo, pervertendo e corrompendo, nos quer insinuar o exercício do verbo visível e, mais além, do invisível, da apreensão do subjacente. Basta que nos socorremos da memória e da imaginação, da fantasia, tudo cognitivo do remoto.

Temos diante de nós um poderoso homem, chamem-no de artista se quiserem e disso precisarem, que, destemido, de seus medos e de seus terrores, de sua Weltschmerz, sua fonte de vitalidade e energia fez. E agora, nos convida, nos oferece a mão cálida e gentilmente nos empurra, cantarolando ao pé de nosso ouvido: "Se almejarmos conquistar a vida eterna, este é o exato instante para pularmos pra fora da caverna! Não mais a mímesis, mas a nêmesis governe nossa aparência e nosso cerne".

Pois então louvado seja esse cara chamado Antunes, que já foi Antônis e, lá na escuridão, Adônis - o Senhor da Liberdade e do Amor, da Vida e da Morte. Não fez par com a Espumante Afrodite Astarte e a subterânea Perséfone? E não foi habitar a solidão do epíreo e as entranhas da noite?! Mas que solidão, se cercado por astros e estrelas? Très candid!

Rio de Janeiro / Setembro / 2003.

©Alexandros Papadopoulos Evremidis > escritor crítico > Email


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