André Alvim
Arte sem promiscuidade

© Alexandros Papadopoulos Evremidis

A caminho da nova exposição de Alvim, a expectativa era grande. Há uns três anos, eu tinha visto, na coletiva do grupo Miolo, de que ele fez, ou fazia, parte, dois trabalhos que, lembro como se fosse agora, haviam me encantado por sua engenhosidade descomplicada.

Num, realizado ao nível do chão, ele desfuncionalizava a tela como suporte tradicional e preferencial (por oferecer numerus clausus de possibilidades). Ela, portanto, tendo cumprido e esgotado a sua função, e admiravelmente, reconheça-se, não mais constituiria um objetivo a ser perseguido em si e "per se", mas apenas um sinalizador, um guia para vôos maiores e mais altos, além, muito além. Para tal, Alvim havia construído com um monte de telas um muro que impedia a nossa passagem física, mas não a do nosso olhar - ponto de vista - que era assim por frestas estratégicas conduzido para o que existia do outro lado - o mundo e seus eventos, que precisavam ser repensados e reformulados, desconstruídos e, mais, fundamentalmente desestruturados, já que seus dogmas e seus paradigmas haviam nos levado a um "cul de sac", um beco sem saída.

No segundo trabalho daquela fase, chamado Aeroplano, o artista causava estranhamento com os conceitos de aero e plano - palavras que decompôs e inscreveu num dos cantos superiores da galeria, distribuindo pelo teto e pelas duas paredes contíguas. Revelava assim a sua visão e a sua reflexão acerca dos planos e de seus encontro e relacionamento no espaço. A criação parecia aludir ao caráter ilusionista do mundo objetivo, que a toda hora desorienta e engana nossos sentidos e nossas percepções, seduzindo e intrigando-nos ao mesmo tempo.

Mas e agora, em que sentido e direção, e ainda em que medida, teria se desenvolvido a arte de Alvim? A primeira coisa que me chamou a atenção, uma vez mais, foi a simplicidade e o despojamento, uma arte povera, poderíamos dizer, e construtiva e impregnada de conceitos. Elementos não, e até anti, artísticos corroboravam para a elucidação de problemáticas históricas - como não perder o fio da Ariadne, por exemplo.

Povera, porque ele instrumentou sua arte com materiais, tais como areia e seu produto - vidro - e seu parente - grafite; madeira e seus produtos - lápis e papel e remotamente acrílico; e ainda descartes - raspas e pós de borracha, de grafite, de papel. Já a palavra construtiva deve ser entendida, ora no strictu e ora no latu sensu - já que ele delimita o espaço térreo e aéreo e neles literalmente constrói, com areia, países inteiros e com lápis pontes para o livre trânsito das idéias e dos povos. De fato, em uma caixa de areia, dessas usadas para o salto à distância, recipientes de vidro, por sua vez originários de areia, medem e dividem o mundo em porções, lotes, feudos. Se non é vero, é ben trovatto - poderia Alvim ser convidado a fazer uma apresentação aos primos pobres e ricos daquela estreita faixa de terreno arenoso do Mediterrâneo oriental - função e causa de sangrentas digladiações. Tudo pela posse e conseqüente sobrevivência, onde a questão candente seria: de apenas um dos contendores ou haveria "campo" para ambos, todos? Civilização é superação das leis naturais de seleção. E a arte, mais que tudo, tem um papel relevante nisso.

Se essa instalação coloca questões controversas e de difícil resolução, a outra, a da ponte produzida com lápis justapostos, e mais os objetos (elegantes catedrais puristas, discretamente pictóricas devido à coloração de seus inquilinos) - caixas de acrílico contendo resíduos de grafite e de borracha e folhas de papel - materiais absolutamente arcaicos e anacrônicos e ainda assim plenamente funcionais - tocam o coração e a memória afetiva de toda a humanidade que só é humanidade exatamente em função do que Alvim faz evocar, apelo dramático!, em nós - o conhecimento. Sim, ali, ele constrói e paradigmatiza a própria engenharia e a arquitetura do saber e dos meios e mecanismos da sua gênese e da sua transmissão, de geração para geração, de um povo a outro, dos mais velhos aos mais novos (sendo a recíproca igualmente verdadeira).

Mas o aspecto mais cândido e comovedor disso tudo, é Alvim não recorrer a enciclopédias e manuais ou em complexas e sofisticadas invenções ilustrativas. Não, coerente com os primitivos inícios e as origens do procedimento de aprendizagem, ele lança mão de sobras, sujeira, lixo - paupéria total. Sim, são esses os vocábulos apropriados de que ele se apropria para nos dizer. "Limpa direitinho toda essa sujeira que fez!" - não era essa a admoestação que mais ouvíamos dos pais e mestres, ao apontar o lápis, escrever, errar, suar frio e quente de medo e vergonha, apagar com a borracha, raspando e rasgando eventualmente a folha do caderno e assim maculando nossa reputação, e empurrar os pós de um e da outra para 'fora' da carteira ou da mesa? Quantas vezes fizemos isso? Ano após ano, lágrima após lágrima, tijolo sobre tijolo, que é como se adquire e se passa adiante a noção.

Sim, é também disso que Alvim nos fala. Tentativa e erro, tentativa e conserto, tentativa e acerto, até chegar a ouvir o entorpecente concerto e ter o brilho no olhar - de quem sabe que agora sabe. É disso que, na verdade, tratam os mitos de Prometeu e Adão e Eva - não é literal o roubo do fogo, como o não é a degustação da maçã ou a penetração da Eva/Io/Aurora: é a aquisição da tecné, o know-how da criação - artistas e cientistas uni-vos!!

Estaremos porém, adultos, seguindo esse ditame em nosso comportamento social, político, afetivo, amoroso, familiar, pessoal - errar, reconhecer o erro, chorar e tentar consertar e acertar, ou, ao menos, não repetir o mesmo erro, que seja? É uma bela lição de toda e para toda vida, para toda a história. Lição que o artista soube, com apurada elegância e delicadeza sutil, tornar emblemática, consubstanciando-a na ponte pênsil - pênsil, talvez, porque, além dos outros e numerosos atributos, inclusive o de qual concreta jóia celeste flutuar no espaço, é instável e frágil, desmoronando à primeira barbárie e mergulhando no escuro dos Tártaros - já que conhecimento é luz.

O que é ponte, afinal, de que pode ser feita e para que serve? Bem, a de Alvim foi tramada pela sintomática união de centenas de lápis (é um tremendo de um obsessivo, esse rapaz), amarrados uns aos outros e suspensos entre um ponto e outro do nada, e sinaliza e aponta com suas pontas apontadas. Mas também houve e ainda há pontes de cipó, de cordas, de troncos, de pedras e de até de suspiros e de corpos (like a bridge over troubled water I will lay me down). Ponte é religião que religa os seres a suas origens infinitas. É construção que liga uma margem à outra, um ser humano a outro, é passagem, é semicondutor de dados, de voz, de afetos, amores, mensagens, é tornar o partido em íntegro e inteiro, unir Urano e Gaia. Ponte é pensamento. É comunicação!

As idéias de Alvim dão pano para manga, essa mesma manga com que, quando a sujeira do processo aponta-escreve-erra-apaga é muita, alternativamente com a mão, usamos para empurrar o lixo para fora da mesa e, pior, para debaixo do tapete, da consciência. Bravô! Agora vamos deitar na rede, que a ponte de Alvim também parece e tem essa serventia, e cantar que a humanidade do humano repousa no conhecimento e na comunicação - binômio que mantém o homem vivo, o que quer dizer ativo, artista!

Rio de janeiro 2004

©Alexandros Papadopoulos Evremidis > escritor crítico > Email


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