| Ana Miguel | Livro=Sonho |
O fio da meada
ou Sendo a recíproca, por definição, absolutamente verdadeira.

©Alexandros Papadopoulos Evremidis*

Natural, calma e silenciosamente (apesar das explosões), o universo tende à desordem. Aqui e ali, um ou outro oásis para as hordas de sofredores.

Dormi com Ana (na cabeça - ela não já dormiu com todos aqueles pensadores?!). Acordei com Ana, ainda na cabeça, cutucando-me o crânio (Athena Parthena da sofia com panoplia e tudo) e já na ponta da língua, pronta para ganhar a rua, iluminar os escuros e úmidos corredores labirínticos de nosso viver e, já disse, sofrer. Colorir o tingido de não-ores.

Pela ordem: uma única vez eu tinha visto aquele espaço, em pleno prosaico shopping (vá lá, onde todos com tudo sonham), assim tão transfigurado. E agora, essa moça, súbita mente, nele se instalava e criava um mundo paralelo, de onírica dimensão. Um róseo campo de sonhos, separado da prosa por tênue e vítrea linha divisória. Podia-se indiscretamente ver de fora o que lá dentro ocorria - um himeneu imaginário, melhor, vivido e recordado, amorosa e nostalgicamente transcriado e revivido, portanto. E mais: compartilhado com quem, despido dos prejulgados da persona, a ele de tronco desnudo se dispusesse a submeter.

Visão panorâmica: pantufas rosadas à entrada ("comme il faut" para o sacralizado cenário do ali sucedido), piso atapetado de branco virginal, inconsútil, impoluto. Não conspurcar, não manchar, salvo quando o sublime instante chegar. Por aí, livros variados conectados por complexas fiações vasos comunicantes de vermelho-sanguinário. Alguns no chão, outros dependurados do teto. No centro do templo, o templo do amor - uma caminha de menina/moça com sintomático véu/mosquiteiro (ninguém deve interferir ou perturbar a trama ali tramada, a luta ali travada). Ao lado dela, duas miniaturas de caminhas ocupadas por fios menino/menina e por fios interligadas e sinalizadas (depois veria) com "L'enfant que j'etais - l'enfant que tu etait". Absolument candid! Fora toda a sugestão subliminar.

Casinha de boneca? Emília sapeca? (Supondo que) Alice no país e através? Mas boneca não fala! Quer dizer, fala sim, e tudo diz e até tagarela, só que ventrilogando "Las meninas" (e os meninos: sendo estes, na verdade, os que mais atraídos são por elas, razão porque lhes é vedado brincar - medo do que lhes podem causar: violar, macular, arrombar, depredar).

Entramos e, como para cercar a instalação da moça, cada um foi para um lado, marcando encontro, onde mais?, no centro dos acontecimentos vitais, na cama. De pantufas, abaixei-me, então, e hieraticamente passei a examinar os papeizinhos que, via-se logo, continham palavras que simulavam estar saindo de um livro (esteira rolante) e, aderidas à fiação dos... semicondutores artesanais, viajavam até o seguinte e assim sucessivamente. Tendo, de início, sob a ação do farto chope, confundido "songe", sonho, com "singe", macaco, me adeqüei à postura do nosso adorado irmão e, de 4, me pus a saltar de galho em galho, quero dizer, de palavra em palavra, no que senti imenso prazer. Em dois momentos, diante dos livros suspensos do teto, me ergui sentindo como se macacamente estivesse trepando numa árvore. Não me escapou, porém, estarem aqueles livros ali ao alto cumprindo função de soro fisiológico, a, destilando porções/poções homeopáticas de sabedoria, nutrir a paciente. Sim, porque afinal, amor (que é do que estamos falando o tempo todo) rima com dor. Quanta dor pode um ser humano suportar incólume?!

Na verdade eram poucas as palavras, mas, à medida que se repetiam, se acasalavam e se multiplicavam, formando assim seu próprio universo conceitual. O essencial é que, embora cotidianas, como de resto tudo em nossa vida, ditas, lidas ou escritas catalisavam altos teores de toda uma significância existencial, intelectual, afetiva. Mundos e fundos. Num astrápico flash, e sob forte impacto emocional e estético, recordei de como, quando pequeno, eu as recortava a gilete e as colava na parede ao lado da minha cama e olhava e olhava para elas e as pronunciava e as cantava em todas as escalas. Para aprender, pensava, dizia e, ingênuo, acreditava, e nunca mais esquecer. E isso me moveu e comoveu com demasiada intensidade e, por instantes, me senti cúmplice e conspirador da moça que depois viria a me possuir o sono seguinte e seus rutilantes e coloridos sonhos.

Já os livros eram variados, um thesauro de cabeceira, e iam de Kippling, pai do lobinho, a Benjamin, o instigador do pensamento. Em seu interior, as tais palavras viajantes eram sublinhadas e tinham seus contornos costurados/emoldurados pelos fios por que seriam, e eram, transportados. O que também me fascinou foi que, elas, embora as mesmas e unívocas no geral, em cada autor e em cada estrutura, se tornavam prenhes e galgavam sedutoras e inusitadas semiologias. Uma revelação plena. Quanto não devia essa moça estar amando esses homens e essas mulheres!! pensei e... olhe como fico arrepiado agora, como então fiquei. E, claro, em mais de uma ocasião a invejei por esse seu obsessivo e incondicional pothos e malgrè tout também por seu pathos - pelos passos da paixão que deu até emergir, assustada e temerosa, mas ainda assim inteira e íntegra. E mais - sendo autora e parte da instalação, já que trajada no rigor das cores, inclusive nos óculos de (suponho) grau. Texto têxtil, foi só o que ela pronunciou. Um tecido, portanto, tecido por laboriosa aracné. Para mim, isso é o "fio da meada", murmurei sem querer e Leonor, a tudo atenta, ao ouvir a frase, "Já tens o titulo da matéria", comentou com previdente humor. Eu me referia ao fio que a guiava e mantinha viva e ativa e constituía sua rede privada de... computadores. Afinal, não era aquele um hipetexto e não eram aquelas palvras palavras-chaves de busca e a um tempo seus links que nos conectavam aos outros mundos?! Aos mundos dos livros que eram também os mundos dos sonhos?!

Mas... venha, vamos pra cama, conhecer e experimentar a persistente persistência da memória. Lúcia já nela estava deitada e rindo riso nervoso. O que era? "Não sei, há alguém dizendo algo em francês", acho. Deixe-me ver. Deitei de lado e ao pressionar o travesseiro com a cabeça, ouvi uma mulher sôfrega e afogueada, em extasiado êxtase, emitir gritinhos e gemidos contagiantes: "Je t'adore! Je t'adore! Oui, je t'adore! Ah, comme je t'adore". E mais não precisava. Mas algo me fez estranhar o fato de a cama ser de solteiro. Tendo baixado o sátiro em mim, foi minha a vez de rir nervoso e disse: "Só se os amantes, para a mais absoluta intimidade, mesmo após saciada a insaciável saciedade, dormiam o tempo todo um em cima e dentro do outro". O que, diga-se, e digo e repito, não me pareceu nada mal, antes "ben trovato" e apropriado e justo.

O que de amor, o que de humor, o que de ironia, o que de agonia, o que de dor nisso tudo, leitor? Ei, leitor, acorde para o acorde: O sonho acabou acabou de começar. E essa resposta pertence à sua exclusiva soberania.

Rio de Janeiro - maio - 2006

©Alexandros Papadopoulos Evremidis > escritor crítico > Email


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