| Afonso Tostes | Entre paredes |
Lixo - significante em urgente busca de significados

©Alexandros Papadopoulos Evremidis*

Lembro ter, certa vez, ficado fortemente impressionado ao ver Afonso pintar ao... contrário, ou seja, despintar (que seja) a jatos d'água = retirar a tinta previamente empastada às mancheias sobre a tela. Um dramático empate sinalizador do porvir!

Perguntasse eu a virtuais alunos "Cabe uma cidade inteira no exíguo espaço ortogonal de uma galeria?" e certamente um espertinho se adiantaria e a charada mataria - "Maquete" -, no que muito longe da verdade não se encontraria.

Caber, cabe; e cabe também aclarar que a maquete de uma cidade soa ser regida por fatores sindéticos que a amarram e lhe conferem unicidade e organicidade. Sem dizer que nela o epicentro da gravidade está deslocado para o funcional, seguido do séqüito. No caso do Afonso em questão, a questão pertencia ao terreiro da estética social-construtiva, enquanto significante em busca de um significado que o municiasse com uma razão de ser - sua humana destinação.

Lixo! Esse mesmo lixo que alimenta e sustenta (provê com a prometida e não cumprida casa e comida e 'vestida') os sem-número filhos descarnados/descartados da tal mãe gentil, madrasta, pelo estereótipo. Foi lá que Afonso, como se um deles (e por acaso, por osmose, tal a infectante proximidade, não o englobaliza, como a todos nós?), foi buscar a matriz de suas inspiradoras aspirações.

Lixo, está bem, talvez seja pegar pesado. Descartes (sem jogos de palavras nem planos colaterais) seria perfeito - très elegant e acorde com os sinais dos tempos. Fiquemos, porém, com o mais apropriado jargão "materiais de demolição" - pedras, tijolos, madeiras, vidros, metais diversos. Foi por eles que Afonso religiosamente peregrinou, fuçou, catou tocos de variados tamanhos, num burrinho-de-mão carregou e, qual todo trabalhador anônimo, assim por definição, por imundas ruas andou, e por fim na oficina do seu ofício descarregou. Ah, que alívio!

Tudo segunda mão, Afonso? perguntei e, após fração de surpresa, sim, tudo de segunda mão, confirmou. Intervenções mínimas? Intervenções mínimas, anuiu completando o perfil.

E então começou o labor. Com olho amorosa e artisticamente (pleonasmo) clínico, como se meninos de rua ele tivesse recolhido e acolhido, a cada um daqueles tocos de madeira, Afonso examinou, avaliou, diagnosticou e, minimamente intervindo, já dissemos, pôs de pé, dotando-os de identidade e, mais, muito mais, de personalidade. E fez isso respeitando e preservando-lhes a trajetória, os traços, as marcas e os sinais de que eles eram portadores (e mensageiros) - histórico e curriculum: as fendas e as ranhuras, as rachaduras, os chamuscados e os queimados, os carbonizados, os esburacados e carcomidos por cupins e vermes, os com pregos, agora enferrujados, dolorosamente encravados em mãos e pés, suas entranhas. Feridas cicatrizadas e descascadas, mas nunca de todo saradas - libertas quae sera tamen.

E agora, ali estavam, no chão do ortógono, as silenciosas e hieráticas, totêmicas criações de Afonso, testemunhas vivas do tempo da história na infinitude do espaço, a nos contemplar, perquirir, por instantes, severamente inquirir. O sopro de um imperceptível vento me intrigou, assaltou, arrepiou, arrastou. Involuntariamente me vi diante dos avatares das ilhas pascalinas, à espera de Godot (que os escravizaria), dos de Stonehenge a conjurar deuses e demônios e a marcar sua passagem pela luz e pela sombra.

Uma imensa tristeza e uma misteriosa esperança emanavam do ambiente e de seus urálticos habitantes e me permeavam e envolviam densa como cristalinamente. Senti-me apaziguado, integrado e familiarizado. Contrito, abaixei-me e, aproximando-me de vários deles, tentei encetar algum diálogo, que se revelou cúmplice e sedutor. Sim, embora à uma descuidada vista remetessem a burgos, palácios, edifícios, catedrais, à futura e apocalíptica pólis em formação, eram todos eles de alguma forma biomorfos e dotados de intensa vitalidade e presença, não essas referendadas pela vida a que por demais habituados estamos (razão porque nem percebemos), as das aparências, mas outras, absolutamente personalizadas, próprias e proprietárias, originais. Suspirei fundo e repetidamente, cheguei a gemer, e foi de prazer - nada havia a temer. Stendhal estava comigo.

Ao mesmo tempo, naquele espaço, a sensação que me trespassou foi a de que não mais havia duvidas - estávamos todos em procissão, marchando sem saber para onde, quando subitamente nos vimos diante do frio fio do precipício e portanto em iminente risco de entropia e conseqüente colapso. Ardentemente ardia o trilema - continuar paralizado? saltar no abismo? alçar vôo? É nessas críticas horas que poetas, profetas e artistas (muitos artistas!) se fazem necessários. E lá estava um entre nós, que, após a lúcida e dramática exposição de motivos e da memória afetiva/descritiva, sinalizava com as escoras que, não pela bruta força e volume, já que vigorosamente ele as adelgaçara aqui e ali, mas pela discreta elegância de sentimentos, suportavam teto e paredes, embora nenhum deles insinuasse nem um pouco a vontade de desabar. Quem ostensiva e urgentemente precisava ser escorado eram elementos como o individuo, a cidade real, o estado, o governo, as instituições, a cultura, a civilização - a Arte.

Não é por acaso que esse Afonso tem estampado esse jeito de espanto e de encanto. Pensei ter entrelido em seu olhar de ápis que, mesmo se despencássemos no vazio, erro não haveria - teias de aranhas, de delicada e científica precisão e resistência e fina tessitura e trama, nos amorteceriam a queda, sustentariam e, sãos e salvos, resguardariam para o Amanhã de Manhã.

Rio de Janeiro 2005

©Alexandros Papadopoulos Evremidis > escritor crítico > E-mail


| Projeto Zona Instável - Cavalariças - Parque Lage" | Ricardo Ventura, Afonso Tostes e Paulo Climachauska. |

Cavalariças exorcizadas.

©Alexandros Papadopoulos Evremidis*

Um conto de fadas? Um romance da cavalaria medieval? Um homem maduro e rico conhece uma moça jovem e pobre e sente paixão fulminante. Ela é cantora lírica e, portanto, itinerante. Ele a segue por todos os palcos do mundo, no front do gargarejo. Manda flores, bombons, jóias, talvez, roupas íntimas de seda rendada, perfumadas! Tudo para seduzi-la. O golpe final e irresistível - ele constrói não uma mansão, e tampouco um palacete, mas um templo de amor, no coração da mata atlântica, do tamanho de sua adoração por ela. E isso, ali, aos pés do Cristo, ou em seu prosáico sovaco. No ádrio, uma piscina. Os erotômanos a imaginam cheia de champanhe ou, mais passionalmente, vinho tinto, onde os dois, nus, se entregam aos gemidos da luxúria. Ali ao lado, os puros árabes, fêmeas e garanhões, elegantes em sua etérea beleza, com que ele também agraciou a sua amada e para eles edificou artísticas cavalariças, relincham fogosos.

Corta! Corta! como Átropos o fio de nosso viver corta, como se para dizer, e diz, "memento mori", lembre-se, você deve morrer, que a vida e com ela o amor fugidios e efêmeros são, perecíveis mesmo. Nosso casal e seus cavalos são devorados por Cronos, o templo e as cavalariças ficam à mercê da corrosão temporal. Décadas depois, o templo vira escola de artes, nos moldes do Ateliê Suiço, de Paris, onde os alunos, "filhos de Piaget", desenham, pintam e bordam em liberdade. Sucessivos curadores, perdulários, não gostando do cheiro de bosta de cavalo, que o tal abobalhado general preferia ao do povo, e não querendo sujar as mãos, ignoram as cavalariças, cheias de estrume, insetos escatófagos e almas penadas - isso, "se las hay". Até que "fiat lux", a luz se faz e alguém começa a enxergar que, se os sem-terra derramam seu sangue para ocupar terras improdutivas, para nelas plantar o mínimo do mínimo, e os sem-teto, edifícios desocupados, para pelo menos ter onde cair mortos, era crime manter "aquilo" ocioso.

Lembrou-se então de Héracles, desviando o riacho para limpar os estábulos de Áugias, e engrenou a turma da pesada, que literalmente pôs a mão na massa e empunhando vassoura, esfregão, balde de água e sabão, procedeu à limpeza. Na hora de caiar, foi a vez dos pintores, de parede!, mostrar sua arte. Mas ainda faltava exorcizar o terreiro para espantar as penadas almas. Chamou-se então a turma dos pajés - três artistas foram convocados para a difícil missão: Ricardo Ventura, Afonso Tostes e Paulo Climachauska. Como se num reality show, os três ficariam trancados por x dias e expulsariam os intrusos (re)ocupando o espaço. Só que, ao contrário dos big bros, eles não seriam filmados e espionados, violados em sua intimidade. Ocorreria tudo em segredo. Ao final do prazo, aí sim, eles abririam os portões e nós, após ver, diríamos "agora sabemos o que vocês andaram fazendo durante os x dias".

Afonso Tostes, artista da cavalariça-mor, arisco e arredio, pouco disse da sua obra, apenas o suficiente para, com as pistas, montarmos uma crônica livre.
Imaginamos, então, um Tostes angustiado, andando para cá e para lá pelo imenso salão da cavalaria, olhando para as alvas e nuas paredes e fumando um cigarro atrás do outro. Havia dois espaços ali - um externo, que ansiava por sua intervenção, e outro, interno, onde repousava o ímpeto da libido que o levaria a agir. Criar, como se cria, com dores. Só que pensar em dois espaços, sabendo ser o espaço uma mônada, um grandeza integral, parecia, ali, agora, uma convenção insustentável para o sapiens. Uma inconguência intolerável para o artista. Afinal, não era o exterior uma extensão do interior - matriz de todo princípio? Onde ficava a noção da universal interpermeapenetrabilidade? Sentiu-se instável.

Por que os dois espaços, em descompasso, não se coadunavam? Por que um era puro e impecável e o outro profanado e conspurgado? No mesmo ato da angustiante inquirição, Tostes viu o que já sabia - dá para enganar a todos, o tempo todo, e muita gente boa conseguiu isso ao longo do histórico, menos a um, a si próprio. O espaço exterior, que outrora fora um estábulo, que seja, uma cavalariça, o que não a exime do cheiro e do sabor de esterco, estava agora, por graça e obra dos humildes faxineiros, limpo e ordenado, higienizado e luminoso. Já o interior encontrava-se em petição de miséria. Ele entrou lá e testemunhou com os próprios olhos o pretume dos pulmões fumantes, pretos, pretinhos da silva, cansados e esgotados, pedindo arrego. Feridos e escamados, aqui e ali. Os glóbulos vermelhos, carroças transportando piche. O tecido conjuntivo já não os sustinha de pé. O diafragma, sem mais tônus.

Foi aí que Tostes uivou como um lobo das estepes, pegou uns trapos de papel e rabiscou a poética de seu delírio e de sua agonia. Ato contínuo, agarrou as telas pequenas e pintou sinais, signos e semas, tudo com as devidas sutilezas, nuances e conotações, um código hermético. Depois, acendeu mais um cigarro, só que desta vez, ao invés de tragar, ele aproximou a brasa à tela e passou, ritualmente, a queimar os trajetos de suas criações. Era uma sensação catártica essa de simular a cauterização das feridas dos pneumônios fumantes, para que o suposto mal não prosseguisse, o que, inevitavelmente, nos remete a Héracles queimando os pescoços da Hidra após decepar-lhe as cabeças. Ao invés de se deixar abater pelo "cold turkey" da crise de abstinência, Tostes soube sublimar e direcionar as energias para, dia após dia, acender mais e mais cigarros e com eles "cauterizar" um sem fim de telas, sentindo no cheiro e na fumaça daqueles cigarros e daquelas telas a sua mais purificadora vitória - a causa do mal seria doravante instrumento de arte.

Terminada a "pajelança" introdutória, Tostes, seguindo o exemplo dos faxineiros, teria agora que proceder à limpeza das áreas maiores dos pulmões enegrecidos. Pendurou, então, uma tela monumental no prego, na parede oposta à entrada da cavaliça, e, como que possuído pelo transe do "action painting", de pincel em mão, foi, com vigorosa agressividade, ora aplicando ora atirando tinta preta, como se ela simbolizasse a nicotina e o alcatrão, poluidores do sagrado espaço que lhe era destinado manipular, violentamente arrancados da superfície pulmonar. Quatro telas assim ele pintou e o resultado o agradou por lhe indicar a exata dimensão do drama - eram as radiografias do deplorável estado. Mas ele já não botava um cigarro na boca fazia dias e sentia-se feliz. E seus pulmões, como estariam eles agora? Menos pretos e menos sofridos? Ele que já os representara no "antes", decidiu mostrá-los também no "agora".

A última tela ainda estava no prego. Tostes pegou daquela mesma mangueira, que a turma da limpeza utilizara para lavar o chão da estrebaria, abriu a torneira e, com arte e meticulosa cerimônia, passou a retirar os excessos de tinta, abrindo clareiras aqui e ali. O sol estava timidamente anunciando sua volta por entre nuvens carregadas. E isso era bom e disso ele gostou. Tanto que substituiu a tela do prego por outra e a limpou também. Agora eram duas pretas, para o "antes", e duas, mais ou menos lavadas, para o "agora" - uma para cada pulmão, brincou e riu o riso fácil do dever cumprido. Pendurou-as, então, nas paredes laterais da cavalariça, e de tal forma que uma "suja" e uma "lavada" ficassem de frente para uma "lavada" e uma "suja". Esses seriam seus indicadores.

Tudo pronto, Tostes nem precisou se olhar nos espelhos do colega Climachauska, na cavalariça ao lado, para saber de seu aspecto - mãos, braços, rosto e roupas estavam todos tão sujos de tinta, ele todo parecia uma mancha só, o limpador de chaminés daquele filme. Mas isso era o que menos importava. O essencial ali era a alma lavada que ele acabara de adquirir, paga com arte. Tanto que passou as mãos prazerosamente pelo rosto e se lambuzou ainda mais. Um último suspiro e aí, sim, era hora do catártico banho.

Ao retornar para a já agora cavalariça-galeria-de-arte, para uma derradeira inspeção, ocorreu algo tão impressionante que, se místicos fóssemos, creditá-lo-íamos ao sobrenatural. Já da entrada, quando seu olhar caiu sobre o retângulo onde haviam estado supensos os quadros, durante a exorcísmica operação, viu que o espaço ao redor estava todo manchado de pingos, respingos e esguichos de tinta preta. Impulsivamente, pensou em limpá-lo, mas sentiu-se impedido. Aproximou-se então mais, olhar fixo no retângulo, e, quando se sentiu na distância focal ideal, parou e, duvidando de seus próprios sentidos, exultou! O branco do retângulo, perfeitamente emoldurado pelas manchas pretas, emulando uma cor complementar, que sabidamente expande a primária, parecia mais branco que o branco das paredes recém caiadas da cavalariça, como se ele, após sucessivas camadas de tinta, subitamente tivesse ganhado volume, concretude, textura e luminosidade inimagináveis. Era uma translúcida placa de mármore de Carrara, iluminada com backlight, que se encontrava ali?

Ao se dar, finalmente, conta de que estava diante de uma obra-prima, a sua!, Tostes silenciosamente chorou de emoção. E se lembrou do ancestral Malevitch, de sua luta e de seu sofrimento, da desesperada busca pela forma pura, de como ele pensou tê-la encontrado pintando a tela "Branco sobre branco" e de como ele se tornou escárnio dos críticos e da sociedade de seu tempo. Enquanto que ele, Tostes, nem precisara pintar nada - pelo não fazer, ele fizera e alcançara o ideal - o branco silencioso e simples, a sinalizar-lhe como seria o "depois", aonde ele e todos os homens, inclusive Fausto, almejam um dia chegar - à inocência e à pureza, na vida e na arte!

Rio de Janeiro 2001

©Alexandros Papadopoulos Evremidis > escritor crítico > Email


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©Alexandros Papadopoulos Evremidis = escritor crítico > Email
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